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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

m-u-n-d-o

reta final de 2023

15
Out23

Aos dias de hoje, o acesso à informação é fácil, tão fácil que qualquer um pode ser portador e disseminador de informação, quer seja ela verdadeira ou não.

Das opiniões que podemos filtrar em comentários nas redes sociais, verifica-se que grande parte do conteúdo neles existentes dizem respeito "a palavras frontais e a sinceridade extrema", sabendo que a sinceridade extrema pertence à visão própria de cada individuo, àquilo que experienciou, às suas crenças e valores é difícil chegar a consensos.

Não me parece que estejamos mais civilizados, parece-me sim que estamos todos numa imensa e global arena de combates sinceros e sangrentos, tudo isto em dois mundos ao mesmo tempo.

Se por um lado esgotam-se os recursos naturais em nome do deus economia, por outro lado mata-se em nome de deus, não havendo qualquer problema em morrer, porque deus irá acolher os seus fiéis.

Por todo o lado a existência de deus é a arma ideal para explicar a mais delicada das situações, com isso se explica a paz, mas também se explica a guerra, na súmula deus ordena e o individuo faz acontecer. Acredita-se tanto no invisivel que todos os sentidos (visão, tacto, olfato, audição, paladar) são elevados à inesxistência.

Há uma utópica recompensa na morte.

Não apenas na morte das pessoas, mas na morte da natureza e dos animais, na destruição do planeta, na destruição da paz.

Há vida na guerra.

Na guerra tudo é possível, até a recompensa para além morte.

Na guerra fazem-se fortunas, amamentam-se poderes infindos sobre os outros, os frutos da guerra são, destruição, sangue, raiva, desilusão, pobreza, fome, doença, órfãos, terra queimada, mesmo que não se morra no corpo, morre-se no espírito, morre-se no sonho, morre-se pela dor naquilo em que se acreditou.

Investir na guerra é o poder supremo de qualquer manipulador, que a guerra não se resume apenas a balas e outros artefactos bélicos, mas a todas as acções praticadas com a intenção de ter poder sobre o outro, nas guerrilhas quotidianas através de teclados, de frases vestidas de sinceridade e assumidas como directas, na cinzenta tomada de decisão pessoal de magoar sem ter sido dada a permissão.

Na coisa do género com a qual nos identificamos, na baralhação mental deste mundo bizarro, na loucura da transformação ao minuto da sociedade e do indivíduo na sua tomada de decisão.

A paz exige inteligência, diálogo, tempo e vontade. Estamos longe disso. 

A guerra gera altos negócios, poderes (minúsculos, pequenos e grandes), audiências, coisas mais apetecíveis aos dias de hoje na ânsia de deixar rastro em todas as suas dimensões. 

 

Tempo do desassossego

24
Fev23

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IMG_20230129_081527.jpg Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com os seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

Bernardo Soares, In Livro do Desassossego 

 

 

Inquietação

21
Nov22

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Há muito tempo que não aprecio esta paisagem com o sentimento de tranquilidade em mim, é-me impossível esquecer a actualidade, a guerra na Ucrânia, uma mortandade pavorosa que cresce a cada dia, o frio gélido que se aproxima a passos galopantes, tanto sofrimento em causa da Liberdade. Foi sempre assim, a necessidade de sofrimento para uma qualquer libertação, até as histórias de amor são verdadeiras odes ao sofrimento, como se não houvesse amores felizes. Nada disto é tranquilo. Dificilmente vamos passar deste patamar. Escorrem as regras, através das garras que mais fincam, sejam elas do poder, do dinheiro, da ignorância, não importa onde, não importa quem, vão-se aos poucos os que guardavam as memórias de um mundo real - como quem guarda tesouros para repartir - daqui a nada pouco será contado, as vozes calam-se à medida em que se sentem ser inúteis, diria até, ridículas. Todos os dias morremos um pouco, menos válidos que antes.

 

povos

03
Nov22

 

 Ilustração  Siiri Väisänen

Acho muito significativo, sob esse ponto de vista, que Husak tenha mandado expulsar das universidades e dos institutos científicos cento e quarenta e cinco historiadores tchecos. (Dizem que, para cada historiador, misteriosamente, como num conto de fadas, um novo monumento de Lenine surgiu em alguma parte da Boémia.) Em 1971, um desses historiadores, Milan Hübl, com seus óculos de lentes extraordinariamente grossas, estava no meu apartamento da Rua Bartolomejska. Olhávamos pela janela as torres do Hradeany e estávamos tristes.

- Para liquidar os povos- dizia Hübl-, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá uma outra cultura e lhes inventa uma outra história. Em seguida, o povo começa lentamente a esquecer o que é e o que era. O mundo à sua volta o esquece ainda mais depressa.

Milan Kundera, in O livro do riso e do esquecimento