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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Paz

01
Jan23

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Nós não podemos ser da Terra!
Ninguém destrói a sua casa com o à-vontade
da Humanidade a dar cabo do planeta!
(...)
Estamos cá por empréstimo. De nascimento e de morada.
Talvez, havendo rumado ao lado oposto, o natural,
a guerra fosse dita estúpida,
fútil o sacrifício da conquista,
porque de razão contrária à nossa meta.
Talvez, diante da paisagem liberta de ameaças,
de cavalos mortos, de pontas de lança,
de lutos carregados, de estandartes,
parássemos, tranquilos, de sorriso aberto
e ouvido alerta para o coro de vozes.
Talvez venerássemos, juntos, a brisa nas folhas,
o canto das baleias, das aves e das fontes,
sentíssemos gratidão pelo cheiro são do mar,
pela foice, pela água, pela vinha, pelas flores,
pelas montanhas em cadeia, pelas aldeias,
pelo pão, pelos céus, pelo luar da noite,
soubéssemos ligar-nos à luz que nos rodeia e espera,
elevássemos a vida às palavras boas, e,
de uma vez por todas, aprendessemos
a divina melodia dos abraços.
 
Margarida Faro
 
Retirado daqui.

Pontos de azul

17
Mai21

 

A espaçonave estava bem longe de casa. Eu pensei que seria uma boa ideia, logo depois de Saturno, fazer ela dar uma ultima olhada em direção de casa.

De Saturno, a Terra apareceria muito pequena para a Voyager apanhar qualquer detalhe, nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um “pixel” solitário, dificilmente distinguível de muitos outros pontos de luz que a Voyager avistaria: Planetas vizinhos, sóis distantes. Mas justamente por causa dessa imprecisão de nosso mundo assim revelado valeria a pena ter tal fotografia.

Já havia sido bem entendido por cientistas e filósofos da antiguidade clássica, que a Terra era um mero ponto de luz em um vasto cosmos circundante, mas ninguém jamais a tinha visto assim. Aqui estava nossa primeira chance, e talvez a nossa última nas próximas décadas.

Então, aqui está – um mosaico quadriculado estendido em cima dos planetas, e um fundo pontilhado de estrelas distantes. Por causa do reflexo da luz do sol na espaçonave, a Terra parece estar apoiada em um raio de sol. Como se houvesse alguma importância especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente de geometria e ótica. Não há nenhum sinal de humanos nessa foto. Nem nossas modificações da superfície da Terra, nem nossas maquinas, nem nós mesmos. Desse ponto de vista, nossa obsessão com nacionalismo não aparece em evidencia. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são irrelevantes, uma fina película de vida num obscuro e solitário torrão de rocha e metal.

Considere novamente esse ponto. É aqui. É nosso lar. Somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas económicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada crianças esperançosas, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada “superstar”, cada “lidere supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, nos quase imperceptíveis habitantes de um outro canto, o quão frequentemente seus mal-entendidos, o quanto sua ânsia por se matarem, e o quão fervorosamente eles se odeiam. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, em sua gloria e triunfo, eles pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginaria auto-importancia, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, é desafiada por esse pálido ponto de luz.

Nosso planeta é um espécime solitário na grande e envolvente escuridão cósmica. Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não ha nenhum indicio que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nos mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora que sustenta vida. Não há lugar nenhum, pelo menos no futuro próximo, no qual nossa espécie possa migrar. Visitar, talvez, se estabelecer, ainda não. Goste ou não, por enquanto, a terra é onde estamos estabelecidos.

Foi dito que a astronomia é uma experiência que traz humildade e constrói o carácter. Talvez, não haja melhor demonstração das tolices e vaidades humanas que essa imagem distante do nosso pequeno mundo. Ela enfatiza nossa responsabilidade de tratarmos melhor uns aos outros, e de preservar e estimar o único lar que nós conhecemos… o pálido ponto azul.

 

Texto de Carl Sagan

"Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo"

14
Dez20

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Ilustração Robert Duncan

 

Se és capaz de manter tua calma, quando,

todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.

De crer em ti quando estão todos duvidando,

e para esses no entanto achar uma desculpa.



Se és capaz de esperar sem te desesperares,

ou, enganado, não mentir ao mentiroso,

Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,

e não parecer bom demais, nem pretensioso.



Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,

de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.

Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,

tratar da mesma forma a esses dois impostores.



Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,

em armadilhas as verdades que disseste

E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,

e refazê-las com o bem pouco que te reste.



Se és capaz de arriscar numa única parada,

tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.

E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,

resignado, tornar ao ponto de partida.



De forçar coração, nervos, músculos, tudo,

a dar seja o que for que neles ainda existe.

E a persistir assim quando, exausto, contudo,

resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!



Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,

e, entre Reis, não perder a naturalidade.

E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,

se a todos podes ser de alguma utilidade.



Se és capaz de dar, segundo por segundo,

ao minuto fatal todo valor e brilho.

Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,

e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!
  

    



Poema de Rudyard Kipling, tradução Guilherme de Almeida.

 

 

 

A pandemia das ideias e dos outros

COVID-19

09
Nov20

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As medidas quando são tomadas de modo contraditório, denotam a desorientação das ideias, levando à desorganização dos sistemas. Podemos ir ao supermercado, mas não podemos andar na rua, podemos ir trabalhar em transportes cheios, mas não podemos ir ao restaurante durante o fim-de-semana. As escolas estão cheias, mas não são focos de vírus. Ando bêbada e não sei qual a bebida que ando a tomar. 

 

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Não morremos do mal, vamos morrer da cura. Podes estar com a tua família, mas se viveres sozinho deves manter-te assim. Ouves falar que as camas dos cuidados intensivos estão esgotadas em certo hospital,  tens curiosidade em saber quantas são e sabes depois que resumem-se a umas dez. Questionas-te, afinal há muitos doentes, ou poucas camas? Noutros há camas, mas não existem recursos humanos. E passamos meses nisto.

 

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Fala-se em fome, perda de empregos, aumento de outras doenças, e um galopante agravamento da  miséria. Isso preocupa-me. Quais serão as medidas restritivas da miséria? Mais uma vez tudo se baseia em números. O pânico alastra-se, assim como a ignorância. 

 

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Temos a mania que não somos animais, no entanto apanhamos os mesmos vírus. Este ser que somos e elevado à imagem de Deus aparece agora indefeso perante um organismo invisível. Temos então mais um fantasma para nos assombrar os dias. 

 

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E se Deus for a terra que pisamos? E se o bater sísmico que se ouve a cada vinte e seis segundos for o coração de Deus? Estará Deus farto de nós? Os fantasmas são agora os sacos plásticos que transportamos para casa, os materiais que lavamos transloucadamente, mesmo que no intimo lá nos passe pelos neurónios que o vírus poderá já estar inactivo ou sem grande carga viral. 

 

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Quantas máscaras mudamos por dia? Nem sei. Desapareceram dos jornais televisivos as crises humanitárias, a fome e a seca em África, e tantos outros assuntos que levam a mortes diárias não contabilizadas para pandemia. "Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas", fingindo que só temos um problema quando somos levados a pensar que há apenas um problema por resolver. O sentido crítico deixou de existir, passamos assim a coexistir com o pensamento único, que é agora a direcção que nos apontam, e a qual não devemos - nunca - questionar, como forma de sermos postos de parte, tal como quando temos um vírus desconhecido. 

 

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As ilustrações são de Alan Macdonald