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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Este tempo está bom para ficar em casa, mas eu não quero ficar em casa!

da saga: uma caminhada por dia

06
Fev21

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Hoje está bom para ficar em casa, no quente do sofá, mas não me apetece, eu gosto de temporais, de sentir o vento na cara e de ver as nuvens baixas e cinzentas fazendo rasantes às gaivotas. Assim saí na mesma, rumo ao caminho de sempre, estava frio, o o vento uivava nas árvores, as flores tilintavam de frio, com uma bravura que me espanta sempre. Os líquenes surgiam alaranjados e cinzentos, colados aos troncos e às pedras dos muros, dando um enfeite alegre ao dia.

Os líquenes são fungos liquenizados ou seja, são fungos que vivem em simbiose com um organismo fotossintético (alga ou cianobactéria).  Esta associação permite que o líquene consiga sobreviver em condições ambientais e habitats em que os parceiros isolados não conseguiriam, dando-lhes uma grande resistência e longevidade.  Isto porque o fungo recebe nutrientes produzidos através da fotossíntese pelo fotobionte e o fotobionte recebe protecção contra a radiação e dessecação. Assim, podem ser encontratos a crescer em praticamente todo o lado, desde os trópicos aos pólos, em todo o tipo de substratos (árvores, arbustos, musgos, rochas, solo, carapaça de insectos, substratos artificiais, etc).

O tojo também está florido, aqui e ali viam-se pequenas moitas. Algumas papoilas, e pequenas flores silvestres em tons de roxo, rosa, lilás, branco, amarelo. As gaivotas vindas do sul voavam rumo a norte contra o vento, imagino então o esforço que é necessário para manter a rota. Passado um tempo, deixei de sentir o frio, e as mãos ficaram quentes, tal como os pés, pelo caminho alguns cães passeavam os donos, dando sentido àquela saída em dia de chuva.  

 

  

Um dia li num livro:

«viajar cura a melancolia».

 

Creio que, na altura, acreditei no que lia.

Estava doente, tinha quinze anos.

Não me lembro da doença que me levara à cama,

recordo apenas a impressão que me causara,

então, o que acabara de ler.

Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes

e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto,

persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.

 

A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.

Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos,

mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite...

Avancei sempre, sem destino certo.

Tudo começou a seguir àquela doença.

Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti.

Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas,

apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude.

Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha;

vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.

Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo,

como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo,

em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...

e quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.

Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida,

se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidiana.

Aprendeu a viver sem possuir nada, sem  um modo de vida.

Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo.

Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma,

no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.

A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes,

ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.

O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único,

não se confunde com nenhum outro.

Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,

purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;

e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.

O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,

os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.

Aprendeu a nomear o mundo.

Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada;

sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.

A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,

mata-lhe a alma - estagna o pensamento.

Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.

Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,

se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,

o una de novo ao Universo.

 

O poema pertence a Al Berto

 

 

#diariodagratidao 05-03-2019

05
Mar19

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Ilustração Gabriel Pacheco

 

Hoje fui ver o rio, havia temporal, gosto de temporais, dão-me a oportunidade de ver a capacidade camaleónica do rio e do oceano se transformarem. O rio estava cinzento e revolto, as gaivotas estavam recolhidas ou então voavam em voos rápidos levadas pelo vento. Na rua um casal passeava abraçado debaixo do guarda-chuva, pareciam alegres apesar de estarem molhados. A chuva escorria pelas vidraças e a roupa não enxugou, foi um dia de preguiça e soneca.