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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Árvore de Natal

06
Dez22

Nossa Senhora do Silêncio

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folhejo-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?

Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?

 

Livro do Desassossego por Bernardo Soares

 

 

 

 

 

A arte de saber sonhar

Não é para toda a gente

15
Nov20

sonhar.jpg

Ilustração Ana Ayala

 

Nunca tive grande capacidade para sonhar. Aquela coisa de visualizar aquilo que quero e transformá-lo em realidade comigo não funciona. Disperso-me facilmente e sou levada para pensamentos diversos, depois fico baralhada e já não sei o que quero realmente. Imagino então a ver-me em coisas sérias e importantes, mas depois dou mais importância àquilo que poderia acontecer se fosse antes assim ou assado. Desisti, e deixo então tudo ao capricho do Universo.

No outro dia sonhei e acordei muito assustada, o meu coração batia apressadamente, foi um sonho muito actual, onde eu estava de máscara a ver-me ao espelho, de repente tirei a máscara e vejo a minha imagem reflectida já sem a máscara, vejo uma grande sombra no meu rosto, volto a olhar, arregalo os olhos, tinha um bigode tamanho XXl, e eis que me ocorre um pensamento, isto foi de andar tanto tempo de máscara, criei uma estufa de bigodagem.

 

 

Diário dos meus pensamentos (22)

10
Abr20

IMG_0176.JPG

 

Sabes, passo pelas pontes sem as ver.
Talvez o rio abundante se tenha já secado.
Vieram chuvas risonhas que murmuraram
Segredos e promessas. Partiram velozes
Os sussurros. E as promessas.

Sabes, o cais onde atracam barcos e
Pessoas apressadas que levam sonhos
E moradas nas algibeiras, fica desgarrado
Quando todos partem de olhos pejados de azul.

Sabes, certa noite, silenciosa e confidente,
Pois nela me acolhi, na fresta entre duas
Tábuas do chão gasto, era branco um papel dobrado.
Abri-o como quem descobre um segredo. E li.
Um dos homens mais apressados, daqueles
Que estão sempre com as horas nas mãos,
Deixou cair de entre o seu amor às oportunidades
Um pequeno e terno recado.
Esqueceu-se que dentro dos papéis
É que se escondem os sonhos…

 

 

 

Poema Lília Tavares, in Evocação das águas