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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

O tempo e a mentira dão origem à realidade social em que vivemos

04
Nov20

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Ilustração Claudia Giraudo

 

Quando somos crianças aquilo que nos pode revoltar mais é apanharmos alguém em mentiras. Depois à medida  que crescemos e vamos tendo mais contacto com o mundo, para além do nosso quotidiano, vamos nos dando conta que a mentira é banal em todos os quadrantes da nossa vida e da nossa sociedade. Vivemos agora num tempo em que tudo é muito rápido, não há tempo para grandes surpresas, nem para digerirmos com calma as mentiras da vida. Há quem se refira ao termo "há muitos anos" como se estivesse a falar de décadas, quando no final viemos a saber que são na realidade dois ou três anos.

Mas afinal o que é o tempo e a realidade de hoje em dia?  A realidade é aquilo que se passa, não o que nos contam, o tempo é a mesma medida de sempre, mas levada à realidade daquilo que é transmitido. Assim, hoje é mais fácil obter informação rápida, mas não posso dizer que foi "há muito tempo", quando na realidade se passaram um par de anos. Se assim fosse, uma criança de dez anos seria um velho? Continuamos a precisar de tempo para a compreensão e, não é por haver conexão rápida que isso acelera o processo, muito pelo contrário, há agora diversas interferências que é preciso saber discernir. Se antes tínhamos livros validados, onde podíamos obter o nosso conhecimento, agora temos uma série de fontes credíveis e não credíveis que nos dão a sensação de termos o conhecimento ao nosso alcance sem necessidade do outro. E baralhamos assim a realidade e o tempo. Dando origem a milhões de opiniões e comentários desfasados daquilo que é a verdadeira realidade social. 

Parece haver também um pouco caso sobre a mentira. Mentir é assim, como colocar mais um adereço, damos demasiada importância aos mentirosos, mentir tornou-se num estado normal de consciência, é assumido pela sociedade como fazendo parte da realidade, mente-se em relação à felicidade, em relação ao discurso, às emoções, mente-se por tudo e por nada, num dia a mentira é a notícia, no outro a notícia é mentira. E mentir tornou-se tão banal como deprimente, tal como na corrupção, é assumido e validado em sociedade. Ninguém tem vergonha ou medo de ser mentiroso. É talvez até prestigiante, desde que sirva para atingir os fins. 

Estamos assim deprimidos e desfasados da verdade e do tempo, sem rumo e sem perceber o que andamos por aqui a fazer. Poderia também falar dos suicídios, das doenças autoimunes, das depressões, e de tantos outros estados de espírito que por aí andam, compará-los com a mentira que se vive hoje em dia, com a realidade social isenta de lideres que nos tragam soluções para um futuro mais justo, enquadrar a utilidade das pessoas perante a sociedade, enfim descamar a estratificação do tempo, da mentira e da realidade criada à volta desta. 

 

Qual o local de eleição deste ano?

26
Set20

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Ilustração Irene Fioretti

 

Este ano temos estado demasiado atentos aos outros e passamos muito tempo à janela. Tem sido um ano de profunda reflexão sobre os valores que queremos e dos que devemos abandonar. Não é para mim um ano desperdiçado, como tenho ouvido dizer por aí. É um patamar de mudança, se fosse um jogo, chamaríamos de - mudança de nível. Ou caímos, ou subimos, a diferença é que aqui não há como ficar no mesmo nível. Sabemos que esta janela temporal é comum e global, sabemos também que apesar de ser comum e global, ela é diferente em cada país, e em cada pedaço do globo, e não só por essa forma, ela também difere pelo bairro em que vivemos ou da cidade, pela forma como nos alimentamos, pela profissão que temos, pelo poder económico, pela idade e até o género. A imagem de que o vírus atinge todos da mesma forma não é verdadeira. Há quem tenha de se expor como um peão, outros como um bispo ou um rei. E nisto  passámos a Primavera à janela, tanto na real como na janela virtual que nos permite estarmos aqui a escrever e a lermos uns e outros. A janela é um ponto de partida para o conhecimento, um ponto de vigia, de acesso, e ainda de encontro paralelo neste mundo global de desigualdades crescentes e incrivelmente ignoradas, mesmo debaixo do nosso nariz, perdão - janela. Deste modo a nossa rua (que é onde estão as nossas janelas), é alargada em proporção da população existente globalmente, e é relegada em detrimento de outros valores que continuam a sobrepor-se à sua existência, valores esses que contribuem directamente e indirectamente para aquilo que estamos a viver. Numa doença não se verificam apenas os sinais e os sintomas, muitas das vezes é nas causas que está a solução. Ou então a velha máxima: Onde? Como? Quando? Porquê?

 

O "branco" não existe

Miscigenação

18
Jun20

 

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Ilustração Rita Cardelli

 

 

 

(...)aos ‘brancos racistas portugueses’, aos que defendem uma hierarquização dos indivíduos com base nas suas diferenças físicas e comportamentais herdadas. Do ponto de vista biológico-genético e antropológico, não existem ‘raças’, apenas uma gama enorme de variações de traços físicos entre os seres humanos. O ‘branco’ não existe: a formação étnico-racial da nação portuguesa é resultado de um profundo processo de miscigenação de diferentes povos. O ‘branco’ português é, na verdade, um mestiço.

 

Sociólogo Donizete Rodrigues, docente da Universidade da Beira Interior.

 

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Pensar e resistir

25
Jun19

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Qual é o papel da Educação hoje?

O papel da Educação é de ajudar os alunos a enfrentar problemas da vida. Isso de uma forma geral, mas sobretudo num mundo em crise. Eu fiz vários livros sobre Educação e, para mim, a ideia fundamental é que falta nos programas de Educação alguns temas fundamentais para que as pessoas possam enfrentar problemas da vida.

 

Que temas são esses?

Em primeiro lugar, a Educação trata de de conhecimento, mas é preciso fazer a pergunta: o que significa conhecer? Porque conhecer pode ser uma armadilha, que guarda ilusões, equívocos, erros. Devemos ensinar aos jovens todas as dificuldades do conhecimento, todas as possibilidades de erro. Por exemplo, uma percepção visual não é uma fotografia, é uma reconstrução com os olhos. As pessoas que estão longe de mim parecem pequenas aos meus olhos, mas na minha mente estão normais. Ou seja, todo conhecimento é uma tradução e uma reconstrução. E, em cada tradução, há possibilidade de erro. É muito importante ensinar a enfrentar o erro. O segundo problema da Educação é a compreensão humana. Não se ensina a compreender o outro. Quando falo do outro, não falo de estrangeiros, de pessoas que falam outra língua ou que são de outro país. Falo de quem está ao seu lado. É muito importante para  a vida compreender esse outro. Então, tem a questão da crise. A crise é um momento de muito mais incertezas que em tempos normais. Há angústias e dificuldades. Na Educação em tempos ditos normais, ensinam-se certezas, e não incertezas. Por exemplo, quando a França era um país ocupado pelos alemães, havia uma situação de incerteza, e era preciso encontar possibilidades de enfrentar isso. Resistir à incerteza é importante.

 

O senhor costuma dizer que estamos imersos numa crise. Que crise é esta?

Não é unicamente uma crise econômica, aquela que começou em 2008, mas é uma crise de civilização, das relações humanas. É uma crise de mentalidades, uma crise da Humanidade que não chega a se tornar Humanidade porque a globalização criou uma unificação técnica do planeta, mas não fez uma compreensão das culturas. Ao contrário: as culturas se fecharam em si mesmas, quando começou a unificação técnico-econômica. É uma crise generalizada, enfim. É preciso ensinar hoje em dia, as várias características da globalização. Há característas positivas e muito negativas. Uma parte das populações asiáticas ou latino-americanas que saíram da pobreza e passaram à classe média, mas outra parte dos pobres caiu na miséria. O processo da globalização ainda está descontrolado e nos conduz à possibilidade de catástrofe generalizada. Esses problemas precisam estar na Educação. Para onde vamos? Onde estamos, humanos? Hoje em dia é necessário ter consciência de que pertencemos à espécie humana, que tem um destino comum frente a tantos perigos terríveis. Não existe essa consciência, mas o oposto dela. A crise, a angústia fazem com que as pessoas se fecham em suas próprias identidades, etnias, religições, nações. A Educação precisa ensinar essa consciência de pertencimento à Humanidade.

 

O senhor disse que resistir é importante em tempos de crise. A Educação é uma forma de resistência?

Sim, resistência é um tema fundamental da Educação hoje. Existe uma onda generalizada de retrocessos, uma crise generalizada de democracia em muitos países. É uma degradação do pensamento político que não é nada mais do que uma obediência à economia. Vivemos a destruição da política em proveito da economia. O poder econômico controla a política, e não mais o caminho oposto. Nessa onda de retrocessos, de crise na democracia, há o neoautoritarismo, um novo tipo de poder, como na Turquia, na Rússia, na Hungria e aqui mesmo, no Brasil. A França também corre este perigo, além de outros países. É uma época de retrocessos e devemos resistir. Resistir pelos valores humanistas, resistir pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Temos que manter essa ideia de fraternidade humana, de uma economia solidária, devemos manter uma ideia de, digamos, oásis, outro tipo de vida que não obedeça a poderes econômicos. Isso é resistência.

 

Edgar Morin, sociólogo.

 

Texto retirado de O Globo.