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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Sensação

14
Jan24

Sinto-me assim uma coisa preciosa, fora do tempo, deslocada nas palavras, sabedora de outros saberes, por enquanto sem importância, sou como aquela mobília de outra época e de outras emoções, coisas vividas ao relento, nas margens de um rio, sob as estrelas, ao frio, ao calor sem protector solar, comendo iogurte com colheradas de açúcar, saboreando o granulado doce que se colava à língua, beijos mornos no areal escaldante, sapatos únicos, não no sentido de exclusivos, carcaça estaladiça com manteiga feita com natas do leite trazido pelo leiteiro, gritos na rua, risos sem remorso, alcunhas que faziam sentido, coisas sem sentido que tinham graça, a graça dos dias compridos desprovidos de ausências. 

Sinto-me coisa de museu, de palavras em desuso, de colheitas de alfarrobas e de subidas a montes de amêndoas colhidas com casca mole e casca dura, a pinhões rachados na pedra debaixo de grandes pinheiros mansos, a estradas ladeadas de grandes árvores, a sombras frescas e amoras doces cheias de poeira dos caminhos feitos de areia e pedra miudinha. 

Sinto-me antiga, quase com pele de seda, fazendo lembrar o papel de cetim, canetas de bico fino escrevendo em páginas de papel de linhas azuis, com cuidado para não as perfurar, cuidando da letra e do erro para não ter que as amarrotar e deitar fora.

Sinto-me fora de moda, porque parece-me que já usei tudo, que não há nada novo ou desconhecido, coisas de riscas e de quadrados, de folhos e de plissados, franzidos e curtos, compridos e berrantes.

Sinto-me cheia, de tudo e de nada, uma coisa estranha, mas conhecida, calma, mas desesperante, eu mesma, mas não eu de sempre, mas a de agora, e sabe-se lá mais o quê, assim como peça de museu, avistada, olhada com interesse, mas sem se saber bem o que é.

Percepção

19
Mai20

Sensação.jpg

Ilustração  Lovisa Axellie

 

A interacção do homem com o mundo passa totalmente pela janela dos sentidos. 

 

José Predebon 

 

Há sensações que estão relacionadas com o nosso próprio organismo, são introceptivas, a fome é uma dessas sensações. Essas sensações indicam na sua maioria desconforto, pode ser uma dor de cabeça, um mal-estar, calor, ou frio, provavelmente já aprendemos o seu significado ao termos essa experiência. Estas sensações são muito importantes para o bem estar do nosso organismo, porque nos permitem perceber o bom e o mau. Dependendo do que percebemos vamos agir de determinada maneira. Se a fome é uma dessas sensações, a que sentimos muitas vezes não passa de vontade de comer, mas e aquela fome que mata, se nos colocássemos na experiência o que poderíamos retirar dessa construção mental? Modificaria a nossa forma de ver o mundo? Ou continuaríamos a deixar passar ao lado como fazemos tantas vezes, por exemplo enquanto jantamos e vemos imagens e as notícias de gente esfomeada, vemos  e sabemos que existem milhares de crianças que morrem à fome no mundo, temos uma leve sensação do que aquilo é, mas se soubéssemos na realidade essa sensação, seríamos nós capazes de reverter essa calamidade e tornar este nosso mundo um lugar melhor e mais justo?

 

Por baixo

10
Mar19

chuva.jpg

 

 

 

Minha imaginação é um Arco de Triunfo.

Por baixo passa roda a Vida.

Passa a vida comercial de hoje, automóveis, camiões,

Passa a vida tradicional nos trajes de alguns regimentos,

Passam todas as classes sociais, passam todas as formas de vida,

E no momento em que passam na sombra do Arco de Triunfo

Qualquer coisa de triunfal cai sobre eles,

E eles são, um momento, pequenos e grandes.

São momentaneamente um triunfo que eu os faço ser.

 

 

O Arco de Triunfo da minha Imaginação

Assenta de um lado sobre Deus e do outro

Sobre o quotidiano, sobre o mesquinho (segundo se julga),

Sobre a faina de todas as horas, as sensações de todos os momentos,

E as rápidas intenções que morrem antes do gesto.

 

 

Eu-próprio, aparte e fora da minha imaginação,

E contudo parte dela,

Sou a figura triunfal que olha do alto do arco,

Que sai do arco e lhe pertence,

E fita quem passa por baixo elevada e suspensa,

Monstruosa e bela.

 

 

Mas às grandes horas da minha sensação,

Quando em vez de rectilínea, ela é circular

E gira vertiginosamente sobre si-própria,

O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,

E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,

E toda a gente que passa,

E todo o passado da gente que passa,

E todo o futuro da gente que passa,

E toda a gente que passará

E toda a gente que já passou.

Sinto isto, e ao senti-lo sou cada vez mais

A figura esculpida a sair do alto do arco

Que fita para baixo

O universo que passa.

Mas eu próprio sou o Universo,

Eu próprio sou sujeito e objecto,

Eu próprio sou Arco e Rua,

Eu próprio cinjo e deixo passar, abranjo e liberto,

Fito de alto, e de baixo fito-me fitando,

Passo por baixo, fico em cima, quedo-me dos lados,

Totalizo e transcendo,

Realizo Deus numa arquitectura triunfal

De arco de Triunfo posto sobre o universo,

De arco de triunfo construído

Sobre todas as sensações de todos que sentem

E sobre todas as sensações de todas as sensações...

 

 

Poesia do ímpeto e do giro,

Da vertigem e da explosão,

Poesia dinâmica, sensacionista, silvando

Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo,

Em grandes rios de chama, em grandes vulcões de lume.

 

 

 

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  - 28.