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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Pela poesia se vai até à verdade

07
Dez23
 
 
Hoje, cá dentro, houve festa...

Alcatifei-me de veludo azul,
fiz pintar a Ternura os meus salões,
e pus cortinas de tule...

 

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Mas não chamei grandes orquestras
nem um clarim, a proclamá-la:
mandei tocar, em mim,
uma música assim de procissão
que levou os meus sentidos
a nem sequer se sentirem, de embevecidos...

 

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Hoje, cá dentro, houve festa...
E, se houve festa e veludos,
e musica azul, e tudo
quanto digo,
foi somente porque a Graça
desceu hoje a visitar-me. 

 

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E eu, que vivo de Infinito
as raras vezes que vivo;
eu, que me sinto cativo
no pouco espaço que habito,
onde a presença de dois,
por ser demais, me embaraça,
deixei logo o meu lugar,
para dar lugar à Graça.

 

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Não tinha pés: tinha passos;
não tinha boca: era beijos;
não tinha voz: era como
se o folhado e a maresia
se tivessem combinado
pra cantar «Ave, Maria...»

 

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Foi então que vivi; então que vi
os poucos metros que vão
da minha Serra às Estrelas:
é que eu, sendo tão pequeno
que nem às vezes me encontro,
andava ali a pairar,
e o meu fim estava nelas
e o meu princípio no Mar.

 

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A Graça, cá dentro, era

a varinha de condão
que me guiava no Ar.
E que bem me conduzia!
Parecia que eu sentia
as mesmas ânsias e a alegria
da Noite quando, no ventre,
já sente os gritos do Dia.

 

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O poema é de Sebastião da Gama, o poeta da Serra da Arrábida, as fotografias foram tiradas por mim ontem na Serra.

Estrada de mar

12
Jun23

IMG_20230610_091024.jpgEu quando estou olhando para esta paisagem não vejo apenas a outra margem, o rio, a barra, a serra e o oceano, vejo um caminho de gentes do mar, de gente que vai e que vem, de gente que foi e já não veio, de gente que foi em vão, de gente que sofreu e aguentou porque tem de ser, de gente que que me corre nas veias.

 

(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a Lua é bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens de terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, lima vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual deles não sabe amar com violência e doçura? Porque toda a vez que cantam e que amam, bem pode ser a última. Quando se despedem das mulheres não dão rápidos beijos, como os homens da terra que vão para os seus negócios. Dão adeuses longos, mãos que acenam, como que ainda chamando.
 
Jorge Amado, in Mar Morto

 

 

Uma viagem de Traineira

( a todos os trabalhadores do Mar)

13
Set20

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Se a minha avó materna fosse viva, faria hoje cento e três anos, uma mulher de garra, activa, que nasceu no tempo da grande pandemia, que teve dois filhos na época da Segunda Guerra Mundial, que trabalhou sempre na indústria conserveira, desde os seus nove anos de idade, que andou descalça, que passou fome, que manteve sempre o  seu sorriso e o seu optimismo até ao final.  É à sua memória que recorro sempre que preciso de me orientar.  As pessoas não morrem e desaparecem para sempre, as pessoas ficam em nós, a nossa visão da morte é muito limitada, por isso é que tão importante conversarmos, darmos exemplos, partilharmos a nossa experiência, no fundo, darmo-nos aos outros do presente para o futuro, não do nosso futuro, mas daquele em que havemos de já cá não estar.  

 

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Como hoje é domingo, e é um dia de recordar momentos bons, e o Verão está prestes a acabar,  e o tema é relacionado com aquilo que escrevi acima, partilho aqui um texto que escrevi a convite do Robinson, para o blogue colectivo SardinhaSemLata. Assim e numa perspectiva de sardinha livre, eis um domingo da minha vida, em meados dos anos oitenta do século passado. As fotografias foram tiradas por mim, e para que fique encadeado o assunto e as imagens sugiro que leiam os nomes dos barcos. Aproveitei, ainda, o primeiro paragrafo desse texto para preencher o meu perfil aqui no blogue - após dez anos de existência.

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O peixe sempre fez parte da minha vida, desde o seu cheiro às suas entranhas. Um peixe escamado é mais vulnerável, um peixe de olhos vermelhos não interessa a ninguém, o peixe fresco é aquele que ainda tem sabor a mar, e o mar é a imensidão das possibilidades que podemos usufruir. 

 

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Num Verão, já muito distante, passei muitos domingos de Sol a bordo de uma traineira.

É de um dia destes que vos vou falar, talvez não seja um só dia, mas a mistura de todos eles, são aqueles pormenores que de vez em quando recordo, são lembranças de mim enquanto criança que despertam agora para o quotidiano. Naquele tempo, o meu pai trabalhava numa traineira azul clara, que tinha nome de homem; os donos, um casal sem filhos, gostavam de passear pelo Sado ao domingo e, apesar da faina diária e de ser dia de folga, era nesses dias que pairava a descontracção e a vontade de usufruir do Rio, de Tróia e da Serra da Arrábida. Assim, partíamos de manhãzinha, quando a neblina ainda estava agarrada às águas do Sado, o Sol despontava também animado com a nossa viagem, carregávamos a comida para o bote e depois para o barco. A minha bagagem era simples, uma toalha de praia e expectativas, muitas. Avizinhava-se um dia em grande, quanto mais comprido fosse melhor, ninguém se importava de se levantar cedo, tenho a noção que nem dormia bem durante a noite, à espera que ela acabasse. O roncar do motor do barco acordava as gaivotas que por ali houvesse, o meu pai acendia um cigarro e exalava o fumo enquanto largava as amarras, depois, numa manobra elegante e experiente, o Mestre retirava o barco do porto e levava-o para o Rio. A brisa cobria tudo, cheirava a manhã e a rio, a espuma branca ladeava o barco, criando ondas na popa, o bote que ia agarrado com uma corda lançava-se nessas ondas como se tivesse medo de ficar sozinho. Íamos até à Ponta do Verde, se havia muita gente rumávamos até à Caldeira e fundeávamos aí o barco, umas vezes mais ao largo, outras mais perto de terra, quase sempre se via a fatexa no fundo, mas havia outras em que a água estava tão verde escura que tudo parecia ser possível acontecer naquele lugar, pelo menos na minha imaginação. A manhã era passada ali, onde eu e o meu irmão dávamos uns mergulhaços bombásticos, e não havia direito a ter medo, porque se tal acontecesse o meu pai fazia o favor de nos amandar borda fora. Era um sobe e desce da água para o barco, até que a fome se agigantava a cada cinco minutos e fazia-nos ouvir os roncos do nosso próprio estômago. Lá para as onze da manhã os adultos começavam a preparar o almoço, acendia-se o fogareiro, salgava-se o peixe, coziam-se batatas e fazia-se salada de tomates com pimentos assados. Quando as batatas estavam cozidas juntavam-se à salada (que isto de estar num barco pequeno exige muita logística!), assim numa só taça ficavam as batatas e a salada. A mesa era pequena e a malta espalhava-se pelo barco, o fumo do fogareiro travava duelos com o vento marítimo. No meio do balanço manso do barco, do cheiro da comida no ar, de um apetite voraz, do Sol abrasador, do verde e do azul misturados por toda a paisagem, as ondas tocavam tambores no casco azul claro da embarcação, agitando-se ao gosto do vento. Na outra margem Setúbal espreitava-nos, enquanto alguns reflexos de luz no rio cegavam-nos momentaneamente. Ficávamos com a barriga a abarrotar, e como depois de comer não podíamos ir ao banho, adivinhavam-se três horas sem fazer nada? Rumávamos então até à Albarquel. Nessa época a praia era uma pequena baía onde abundavam algas, rochas, polvos, camarões, linguados, mexilhões e uma infinidade de animais marinhos. A água era calma, lisa e verde maravilha. Era hora de andarmos de bote. Eu e o meu irmão íamos por ali fora até atinarmos com os remos, depois tudo era fácil, para a esquerda, para a direita, marcha à ré, e no meio de tudo isto, como se de uma floresta se tratasse, as algas vinham quase à superfície juntando-se, por vezes, alforrecas pelo meio. Eu, medricas, não gostava de nadar ali, lado a lado com aquelas algas gelatinosas e arrepiantes. Ficava-me então pelo remo, e de vez em quando uma mãozinha na água. Depressa chegava o final do dia e as escamas do peixe espalhadas pelo convés há muito que estavam secas, ao pisá-las com os pés descalços sentia o sal juntar-se a mim. Estava quase na hora de voltarmos, mas antes uma última paragem. Outão! Aqui eu podia apreciar os remoinhos na água, ver a saída da Barra e a selvagem grandeza da Serra. A minha pele estava curtida do sol, de tão escura ficava esbranquiçada do sal. Seca e áspera. Comíamos então um lanche na volta à cidade. O Sol já se punha, havia o cheiro a gasóleo no ar, os salpicos de mar na minha cara, uma toalha pelos ombros e ao longe as luzes da cidade começavam a aparecer.  A viagem para terra parecia-me sempre mais curta, as gaivotas por vezes acompanhavam-nos, dando aqueles gritos estridentes de liberdade, depressa entravamos no porto e descíamos para terra, onde subíamos uns degraus cheios de lismos, e onde sempre me chamavam a atenção para ir devagar, o que era o mesmo que me dissessem para ir bem depressa, foi aí que um dia caí e fiz uma mossa na canela da perna, mas afirmei com convicção que não me doeu nada, que era só um arranhão, no entanto aquilo doeu-me até ao tutano, sendo que ainda hoje se passar com a mão sinto aquela cova no osso. Foi num dia destes. Qual deles não sei. 

 

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* Relacionado - A segunda vaga é sempre pior que a primeira, nada que a malta do mar já não saiba. Contudo na segunda vaga temos a obrigação de estarmos preparados, de segurarmos o leme com a força e a mestria que o tempo nos deu. 

 

Uma boa semana para todos. 

    

Quotidiano elástico

06
Jun20

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Ilustração Virginia Soriano Gayarre

 

 

Depois de tanto tempo sem ir às compras hoje fui ver as montras e pela primeira vez em meses entrei numa loja, comprei linha de algodão para crochet, elástico e tecido não tecido. Havia muita gente na rua, algumas pessoas andavam de máscara, outras nem por isso, umas tinham-nas ora no queixo, ora com o nariz de fora, as lojas estavam animadas de gente, não que tivessem apinhadas, nalgumas lojas apenas podiam entrar uma pessoa de cada vez, não havia filas nas lojas de roupa, apenas na sapataria. O colorido de gente a andar nas ruas dava uma animação visual de ânimo, um miúdo tocava guitarra no largo, e as árvores estavam floridas, enfim um dia quase igual a tantos outros do passado, não houvesse o medo escarrapachado a cada olhar mais atrevido. Agora são os olhares que se sobrepõem às outras expressões faciais. 

 

O mais estranho é o silêncio, como se andássemos pé ante pé, há gente na rua, pessoas de um lado para outro, gente nas esplanadas, mas não se ouvem as conversas. Parece-me que as pessoas têm medo de falar, será para o bicho não as ouvir? Faltam os risos a ecoar nas ruas. Faltam os gritos das mães que chamam os filhos. Falta tanto e quase tudo parece igual. Há as idas à praia, e os  grandes ajuntamentos para comemorar, mas comemorar o quê? A volta do lixo às praias, às ruas, à Serra? As festas a que se vai cheias de gente que se desconhece e não se sabe muito bem porque se está ali? 

 

É como se os vícios voltassem em força, depois de uma ressaca dura e brutal, em que pensámos que seríamos capazes de ultrapassá-los, tal como um drogado julga que é apenas mais esta vez. E as praias estão cheias de máscaras, rios de lixo descartável, as bermas da estrada que corre pela Serra estão atulhadas deste lixo, de garrafas, de tudo o que não querem carregar, que miséria, que "porca miséria". 

 

Passei pelos jacarandás em flor, olhei para o céu para visualizar aquele contraste de azuis, algumas nuvens faziam de conta que se escondiam entre os ramos. Fui ver o Rio, estava vento, e ele estava crispado, também eu me sentia assim, não dissemos nada um ao outro, nada havia por dizer, apenas vergonha, a minha.