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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Ultramar, Angola, refugiados, Portugal, racismo, educação, memórias, lembranças, infância...

Vamos aprender a ler nas entrelinhas

31
Jul20

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Tirei estas fotografias para vos mostrar como era estudar em Angola nos anos 70 do século passado, muitos de vocês partilharão destas memórias, que até nem são minhas, são do meu marido. Estas páginas são de um livro da 1º classe, onde lhes era ensinado a ler as frases básicas do seu quotidiano.

 

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Nós que por estes dias temos falado tanto em existir racismo em Portugal, esquecemos as feridas que nos foram impostas. A mim calhou-me um pai vindo do Ultramar, obrigado a ir para uma guerra aos 21 anos, provavelmente sem saber o que fazia ali, dizem os outros que nunca mais foi o mesmo desde que voltou, e eu que nunca o entendi, talvez  por ele nunca falar nada sobre o assunto. Agora à distância dos anos, entendo que há feridas que nunca saram, por mais que o tempo passe e por mais que a gente finja que não existem. 

 

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No fundo todos fomos vítimas, uns no passado, outros no futuro, bastantes no presente. O meu sogro viveu em Angola durante dezoito anos, lá casou, com a noiva vinda de Portugal. E juntos estiveram por lá mais de uma década, dois filhos, casa feita, vida tranquila até a guerra chegar a eles. Enquanto isso outros andavam pelo mato de espingarda às costas... escrevendo cartas às mães e às namoradas. Vidas paralelas e opostas. 

 

 

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Esta é a História que ninguém quer contar. Cheia de dor e sofrimento. Incertezas e juízos de valor. Sempre pensei que podia ter um irmão ou uma irmã lá para aquelas bandas. Impossível saber. Brinco, mas a sério, e digo o mesmo ao meu marido. Uma vez vi uma reportagem que chamava a estas crianças: "filhos do vento". É sem dúvida verdade, o vento a gente sente, sabe que existe, mas não o encontramos aos nossos olhos.

 

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Os retornados, o meu marido nunca foi um retornado, ele era um refugiado. Tal como ele milhares de crianças que aí nasceram. No entanto, devido à sua cor de pele ninguém o manda para a sua terra. Já eu que sou de pele escura, sempre fui considerada retornada, que ironia do destino. O preconceito tal como o vento, a gente sente, a gente sabe que existe, mas por vezes não reconhece de onde vem. 

 

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Não podemos apagar o passado, no entanto é nosso dever transformar o futuro, quebrar a História. Saber que o capim é erva. Que branco é igual a preto. Ultrapassar as ideias feitas de que tivemos um passado grandioso. Descobrir que o nosso passado recente ainda está bem presente no nosso quotidiano, por mais que digam que não. 

 

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E o que eu gosto desta mistura de cores. Dos linguajares doces e dengosos. Daqueles cantos mornos. Daquelas peles de seda e daqueles cabelos fofinhos. Daqueles sorrisos fascinantes. Duma muamba de galinha. É para mim fascinante ver que na diversidade temos tanto a ganhar. Aflige-me que assim não seja na realidade. 

 

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Fico a imaginar quanto ficou por dizer, do que nunca dissemos uns aos outros. Daquilo que nunca nos atrevemos a descrever, sentimentos, raivas, amores, esperanças. Li algures que devemos matar a esperança, pois é ela que nos impede de progredir. Talvez seja verdade, muitas vezes ficamos presos a ela e não agimos, perdemos, foi tanto que nem demos por isso, ou deixamos de ligar, para não ficarmos magoados, outros por medo, quem sabe se por vergonha. 

 

 

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No fundo somos todos alunos a vida inteira. Nesse caderno que é a vida podemos escrever o que quisermos, seja o texto inventado ou não. Mas esse caderno envelhece, e as suas folhas amarelam quando são desgastadas pelo tempo e pelas ironias da vida. Não sei o que valha mais: se um ditado escrito, se uma redacção livre.  No meu caderno gostaria de ter os dois.

 

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Também somos sempre meninos. Há uma chama da infância que mora em nós, escondida por vergonha do adulto. Desse adulto que não se liberta dos preconceitos, que vive amarrado à moda quotidiana do seu tempo. Que teima em carregar o sofrimento como destino universal. Que alimenta a estupidez de uma verdade única. Que quer descobrir novos mundos, mas não cuida do seu. 

 

 

O "branco" não existe

Miscigenação

18
Jun20

 

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Ilustração Rita Cardelli

 

 

 

(...)aos ‘brancos racistas portugueses’, aos que defendem uma hierarquização dos indivíduos com base nas suas diferenças físicas e comportamentais herdadas. Do ponto de vista biológico-genético e antropológico, não existem ‘raças’, apenas uma gama enorme de variações de traços físicos entre os seres humanos. O ‘branco’ não existe: a formação étnico-racial da nação portuguesa é resultado de um profundo processo de miscigenação de diferentes povos. O ‘branco’ português é, na verdade, um mestiço.

 

Sociólogo Donizete Rodrigues, docente da Universidade da Beira Interior.

 

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Racismo e preconceitos

07
Mai20

Corria o ano de 1974, era a  minha primeira semana de aulas, no meu primeiro ano da escola primária, tínhamos acabado de sair da sala de aula e estávamos a caminho das brincadeiras feitas no recreio, quando oiço: não brinquem com aquela menina, porque ela é preta! Olho, e a miúda que disse aquilo estava de dedo em riste apontado para mim a rir-se, não compreendi aquilo, e nem tive tempo de reacção, pois a professora que estava atrás de nós fez ouvir a sua voz, não me lembro do conteúdo das suas palavras, apenas que começou com "isso não se diz", todos tivemos de ouvi-la, mas a que disse foi ainda chamada à parte para uma conversa mais abrangente. Sei que durante quatro anos, o tempo que passei naquela turma, nunca mais ninguém falou sobre o assunto, nem eu alguma vez falei com a tal miúda, não falei nisso em casa, aquilo para mim passou-me ao lado. Eu não tenho carapinha, nasci em Setúbal, passava o meu Verão praticamente na praia, a minha pele morena ficava bastante torriscada pelo Sol,  também não preciso de muito para isso, bastam-me três dias, e com o tempo chegaram muitas pessoas vindas do Ultramar, os chamados Retornados, apesar de muitos terem nascido por lá nunca se livraram dessa alcunha, eu conhecia muita gente vinda de Angola, dava-me com eles, sabia como se vivia lá porque eles me contavam, conhecia as suas comidas, até sabia como eram as suas praias, muita gente me perguntou se eu era de lá, eu respondia que sim, divertia-me com aquilo, da burrice das pessoas que olham para a cor da pele e fazem histórias na sua cabeça. Assim como apreciei a atenção dada na escola à profissão dos pais dos meus colegas, a mim nunca ninguém me pediu para fazer um trabalho sobre a profissão do meu pai, que era pescador, mas era habitual falar-se em quem trabalhava em escritórios e noutras artes parecidas, foi sempre muito interessante ver a vida dos outros, pelo prisma dos outros, mas também seria salutar aprender a diversidade e em como os diversos modos de vida se encaixam na sociedade e qual a sua importância em cada contexto. 

 

A mim não me surpreendem as declarações do André Ventura sobre os Ciganos, porque como ele há muitos, não só com os Ciganos, mas com uma infinidade de outros preconceitos, muitos dos quais tenho sentido na pele, por exemplo: quando digo que trabalho numa escola, perguntam-me logo se sou professora, digo que sou auxiliar, calam-se logo, é como se eu tivesse algo contagioso, assim como quando dizemos que temos piolhos, a reacção é essa. Ou então quando vou a entrevistas de emprego, e  me perguntam o que faço, a mesma reacção, se peço uma declaração com as minhas funções, adivinhem o que vem à cabeça de lista: limpeza dos espaços, já tive de pedir para colocarem aquilo em último, e ficam assim a olhar para mim como se eu fosse um alien. É muito difícil alguém triunfar num mundo preconceitoso, talvez por isso tantos dos nossos emigrantes sejam reconhecidos num outro país. Aqui ainda imperam muitos pressupostos vindos do tempo da outra senhora, alguns estão tão enraizados que servem de desculpa para não dar oportunidade a quem dá todos os dias o seu melhor.  

 

 

Coisas do nosso tempo - Bento Rodrigues

19
Fev20

 

 

Começamos este jornal com o rosto do carácter, da coragem e da lucidez. A coragem de ser o primeiro futebolista em Portugal e um dos poucos no mundo a abandonar um jogo depois de ouvir insultos racistas. O carácter de desafiar os que o tentaram travar sem perceberem que já não era sobre um jogo de futebol, nem sobre o resultado, mas sobre o que nos define enquanto civilização. A lucidez de saber que este é o momento que define um homem, que esta atitude vai muito para lá de um estádio; que tem impacto nas ruas, nos bairros, nas vidas dos que sofrem insultos racistas todos os dias.

 

Bento Rodrigues