Bom dia! ❤️
Desejo-vos uma boa semana em atenção plena.
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Desejo-vos uma boa semana em atenção plena.
Às vezes sentimos que o tempo chegou ao fim, que
as portas se estão a fechar por trás de nós, que já nenhum ruído
de passos nos segue; e temos medo de nos voltar, de dar
de frente com essa sombra que não sabíamos que nos
perseguia, como se ela não andasse sempre atrás de nós,
e não fosse a nossa mais fiel companheira. Às vezes,
em tudo o que nos rodeia, encontramos essa impressão de
que não sabemos onde estamos, como se o caminho para
aqui não tivesse sido o mesmo, desde sempre, e tudo
devesse ser-nos, pelo menos, familiar. A solução é pegar
no fim e metê-lo à boca, como se fosse uma pastilha
elástica, derreter o sabor que o envolve, por amargo
que seja, e no fim pegar nesse resto que ficou e, tal
como se faz à pastilha elástica, deitá-lo fora. Para
que queremos nós o nosso próprio fim? Já bastou
tê-lo saboreado, derretido na boca, sentido o seu
amargo sabor. Então, libertos do nosso fim, veremos
que as portas se voltarão a abrir, que a gente continua
a andar à nossa volta, que a sombra já não nos mete medo,
e que se nos voltarmos teremos pela frente o rosto
desejado, o amor, a vida de que o fim nos queria ter privado.
Poema de Nuno Júdice, Às vezes
HÁ ALGUNS ANOS, quando se vendeu aquela que foi a casa de verão da minha infância, onde a minha avó Maria era rainha de nós todos, ficaram memórias e pouco mais. As casas são quem está dentro delas, e quando essas pessoas desaparecem, as casas também morrem sem saber. Levam com elas os cheiros, os recantos onde aconteceram coisas que não voltam a acontecer, mas que darão lugar a que outras pessoas construam nela memórias novas, e que voltem a chamar casa àquele sítio que já não o é para quem um dia a deixou vazia. Naquele tempo que não volta a acontecer, os verões tinham mais do que três meses, eram do tamanho da minha infância toda, e cabiam lá bicicletas, jogos de futebol, o cheiro a figueira, joelhos esfolados, ladeiras que pareciam fáceis de subir, e amigos que eram só daquela altura do ano, até eu voltar para minha casa e esperar impacientemente que voltassem a ser meus amigos no ano seguinte. Vendeu-se a casa, e dividiram-se as memórias por todos, na esperança que trouxessem qualquer coisa daqueles tempos que não voltam a acontecer. Escolhi trazer de lá duas laranjeiras, por ainda estarem vivas no meio de tudo o resto. Tinha sido delas que a minha avó tinha colhido laranjas, mais tarde os meus pais fizeram o mesmo, e depois eu e a minha irmã, numa repetição que, sem saber, viria a fazer dela uma laranjeira genealógica da nossa família. Uma árvore com 70 anos não se deixa levar sem dar luta. As raízes estão firmes, e agarram-se como podem para não mudarem de terra. Por isso, arrancaram-se com o cuidado a que obriga uma operação delicada como esta, e os buracos enormes que deixaram na casa que era da minha avó, faziam parecer que ali tinha rebentado a terra, disposta a engolir quem se atrevesse a passar por cima dela.
As duas laranjeiras daquele tempo que não volta acontecer, vieram juntas na sua primeira viagem desde que nasceram, e foram plantadas no jardim da minha casa para começarem uma vida nova e antiga, tudo ao mesmo tempo. Passado um mês, percebi que uma delas tinha desistido; não aguentou as saudades da sua terra de sempre, e secou de tristeza. A outra sofreu tanto como a primeira, mas estava disposta a dar mais luta. A copa secou toda, e dava poucos sinais de querer começar tudo outra vez, 70 anos depois. Quando a vi deixar-se vencer, fui até um horto onde costumo ir, e perguntei à senhora que lá trabalha o que é que podia fazer para que aquela árvore conseguisse viver mais uns tempos, e contrariar-lhe o fim. Levei-lhe uma fotografia para mostrar o estado em que a laranjeira estava, e a senhora explicou-me que havia pouco ou nada a fazer, que uma árvore com tantos anos dificilmente aguenta tamanha violência. A fotografia mostrava um tronco a secar, mas no meio de tanto castanho, um ramo verde e frágil estava a nascer de lado, a querer empurrar a vida cá para fora. Aconselhou-me a cortar os ramos mais grossos que já estavam secos, e a tratar daquele verde com todo o cuidado, para ao menos ter algumas folhas e assim enganar o destino. Disse-me que aquela árvore já não iria dar mais frutos, e mesmo que desse, aquela qualidade de laranjas não tem caroço, e portanto não daria para semear e começar uma história nova, mas que se a árvore tinha uma importância tão grande para mim, que cuidasse dela enquanto ela se aguentasse. Fiz daquele ramo a árvore toda, e tratei-o como se fosse uma nova vida que tinha nascido para contrariar a antiga. O ramo foi crescendo, e foi-se fazendo forte. Dois anos mais tarde, numa manhã que parecia igual às outras, fui até ao jardim. Naquela laranjeira que estava cansada de me fazer a vontade, tinha nascido uma flor, e dessa flor, lá no meio, começava a crescer uma pequena laranja verde, do tamanho de um caroço de cereja. A generosidade da primavera é esta: salvar vidas que não lhe dizem respeito. Pedi por tudo para que o vento não levasse aquela promessa de gomo, para que crescesse e um dia se fizesse laranja da cor dela. No verão desse ano, a árvore que era da casa da minha avó, deu uma laranja na casa que é minha. Arranquei-a como se fosse eu outra vez naqueles verões que eram do tamanho do ano inteiro, e levei-a até à casa da minha mãe. Cortei-a em quatro, e comemos eu, a minha mãe, o meu pai, e a minha filha mais nova. Era ainda mais doce do que quando eu era pequeno, ou se calhar era eu a querer muito que assim fosse. Este ano, a laranjeira que é da família toda, tem muitas laranjas pequenas, do tamanho de muitos caroços de cereja. Não sei o que as espera, porque é muito peso para quem já andou tanto. Mas se esta árvore que era da casa da minha avó nos der aqueles frutos todos, havemos de brindar a quem já não o faz connosco.
E 70 anos depois, aquele tempo que não volta a acontecer, dos verões que não voltam a acontecer, há-de repetir-se enquanto houver gomos.
Texto de Bruno Nogueira, na revista Sábado