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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Serra da Arrábida

Fotografia Artur Pastor poema de Sebastião da Gama

18
Jun20

portinhoda arrábida.jpg

 

Nada sabe do Mar

quem não morreu no Mar.

Calem-se os poetas

e digam só metade

os que andam sobre as ondas

suspensos por um fio.

 

portinhoda arrábida1.jpg

 

Sabe tudo do Mar

quem no Mar perdeu tudo.

Mas dorme lá no fundo,

tem os lábios selados,

e os olhos, reflectem

e claramente explicam

os mistérios do Mar,

para sempre fechados.

 

 

 

Fotografia Artur Pastor, Portinho da Arrábida décadas de 40/60, Serra da Arrábida, Setúbal. Poema, Inscrição de Sebastião da Gama.

Bom dia 💋

14
Set19

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Ilustração Roshi Rouzbehani

 

Há muito tempo, na cidade de Zahlé, ocorreu uma rixa entre um jovem poeta, de nome Fauzi, e um oleiro, chamado Nagib. Para evitar que o tumulto se agravasse foram levados à presença do juiz do lugarejo. O juiz, homem íntegro e bondoso, interrogou primeiramente o oleiro, que parecia muito exaltado.

 - Disseram-me que você foi agredido? Isso é verdade?

- Sim, senhor juiz.  - confirmou o oleiro - fui agredido em minha própria casa por este poeta. Eu estava, como de costume, trabalhando em minha oficina, quando ouvi um ruído e a seguir um baque. Quando fui à janela pude constatar que o poeta Fauzi havia atirado com violência uma pedra, que partiu um dos vasos que estava a secar perto da porta. Exijo uma indemnização! - gritava o oleiro.

O juiz voltou-se para o poeta e perguntou-lhe serenamente:

- Como justifica o seu estranho proceder?

- Senhor juiz, o caso é simples.  - disse o poeta - Há três dias eu passava pela frente da casa do oleiro Nagib, quando percebi que ele declamava um dos meus poemas. Notei com tristeza que os versos estavam errados. Meus poemas eram mutilados pelo oleiro. Aproximei-me dele e ensinei-o a declama-los da forma certa, o que ele fez sem grande dificuldade. No dia seguinte, passei pelo mesmo lugar e ouvi novamente o oleiro a repetir os mesmos versos de forma errada. Cheio de paciência tornei a ensinar-lhe a maneira correta e pedi-lhe que não tornasse a deturpa-los. Hoje, quando eu regressava do trabalho, ao passar diante da casa do oleiro, percebi que ele declamava a minha poesia estropiando as rimas e mutilando vergonhosamente os versos. Não me contive. Apanhei uma pedra e parti com ela um de seus vasos. Como vê, meu comportamento nada mais é do que uma represália pela conduta do oleiro.

Ao ouvir as alegações do poeta, o juiz dirigiu-se ao oleiro e declarou:

- Que esse caso, Nagib, sirva de lição para o futuro. Procure respeitar as obras alheias a fim de que os outros artistas respeitem as suas. Se você equivocadamente julgava-se no direito de quebrar os versos do poeta, achou-se também o poeta egoisticamente no direito de quebrar o seu vaso.

E a sentença foi a seguinte:

- Determino que o oleiro Nagib fabrique um novo vaso de linhas perfeitas e cores harmoniosas, no qual o poeta Fauzi escreverá um de seus lindos versos. Esse vaso será vendido em leilão e a importância obtida pela venda deverá ser dividida em partes iguais entre ambos.

A notícia sobre a forma inesperada como o sábio juiz resolveu a disputa espalhou-se rapidamente.

Foram vendidos muitos vasos feitos por Nagib adornados com os versos do poeta. Em pouco tempo Nagib e Fauzi prosperaram muito. Tornaram-se amigos e cada qual passou a respeitar e a admirar o trabalho do outro.

O oleiro mostrava-se arrebatado ao ouvir os versos do poeta, enquanto o poeta encantava-se com os vasos admiráveis do oleiro.

 

 

 

Histórias e lendas do mundo árabe, Malba Tahan.

 

Circular

03
Set18

 

Ilustrações de  Roman Muradov

 

 

Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro. Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário. Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos. O latejar do tempo na humidade dos lábios. E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos. As estrelas mortas das cidades imaginadas. Os ossos (tristes) das palavras. A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.

 

 

 

Em redor dele chove. Podemos adivinhar um chuva espessa,negra, plúmbea. Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge,esvoaça. As cidades(como em todos os livros que li) ardem. Incêndios que destroem o último coração do sonho. Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha, absorto, a laranja.

 

 

 

A queda da laranja provocará o poema? A laranja voadora é, ou não é,uma laranja imaginada por um louco? E um louco, saberá o que é uma laranja? E se a laranja cair? E o poema? E o poema com uma laranja a cair? E o poema em forma de laranja?

 

 

 

E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?(...)

 

 

 

 

 

E a palavra laranja existirá sem a laranja? E a laranja voará sem a palavra laranja? E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a (esquecer) no meio da noite-servirá(o brilho)da laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se a laranja se deslocar no espaço-mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita-criaráuma ordem ou um caos?

 

 

 

 

O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade. Foi escorraçado.(E)na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos. Os seus próprios gestos-e um rosto suspenso na solidão. Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração?

 

E se escreveu laranja na alma,a alma ficará saborosa? E se escreveu laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer? E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará? Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema-a Vida, sem mais nada-estará aqui? Fora das muralhas da cidade? No interior do meu corpo? ou muito longe de mim-onde sei que possuo uma outra razão...e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente.

 

 

Al Berto, pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares