Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Quando as folhas caem

28
Set25

IMG_20250928_090509.jpg

Aprecio especialmente gente que é resiliente, que não se resume apenas a ser um corpo, que acredita, mesmo na dor, que é possível, e mesmo, tal como uma árvore durante um temporal, tendo sido levado ao limite continua para além dele, mergulhando no seu pequeno espaço cinzento, enfrentando os medos, as crenças e os traumas, rasgando barreiras invisíveis feitas de momentos de solidão que ninguém conhece.

 

Como um vento na floresta,
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.

E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos

No fundo da minha imagem.

E o grande ruído do vento
Que as folhas cobrem de som
Despe-me do pensamento:
Sou ninguém, temo ser bom.

Fernando Pessoa, in “Poesias Inéditas” 

 

IMG_20250928_090522.jpg 

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,

que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.

Jorge Sousa Braga, in “Herbário”

 

Trivialidades

04
Mar25

IMG_20250303_105326.jpg 

O Sonho

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

IMG_20250303_105152.jpg 

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

IMG_20250303_112701.jpg 

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.

 

Poema de Sebastião da Gama

 

 

A Alma e a Gente - VIII #23 - Sebastião da Gama, O Poeta da Arrábida - 05 jun 2010

Daqui até ao Natal - 11

29
Ago24

IMG_20240627_191114.jpg

Se a alegoria consiste num jogo intelectual em que uma série de qualidades fixas pertencentes a um reino serve de correspondente a uma série de qualidades fixas pertencentes a outro reino (de modo que uma “tradução” literal seja possível), um símbolo representa a identificação emocional de um complexo de sentimentos a um objeto exterior, o qual, uma vez que se tenha estabelecido a identificação original, produz imagens sempre novas, com ritmo e desenvolvimento próprios, nem sempre passíveis de tradução. O símbolo evolui continuamente no tempo, ao passo que a alegoria se fixa para sempre.
(Sptizer, 2003, pp.67-68)

 

Dizem por aí que a poesia ajuda a exercitar a mente, a poesia é toda ela um jogo intelectual entre quem escreveu e quem lê, sobretudo leva-nos a outros mundos e desperta-nos para outras visões, tudo isso é um exercício mental, ter ou não ter tempo para ler poesia é uma escolha, um simples verso leva menos de um minuto a ler, no entanto, o benefício alcança largamente muitas dezenas de minutos, as analogias presentes despertam a criatividade, tal como quando te assomas à janela para veres a tua paisagem. Num mundo de imagens volantes a poesia até parece estar presa ao papel, ou a um ecrã, ou até num timbre, mas é uma falsa prisão, porque se liberta em cada leitura ou declamação, vai voando de boca em boca, do olho ao cérebro.

 

 

A metafísica, escrevi eu, busca também o espiritual; mas de maneira totalmente diversa, e tendo um objecto formal completamente diferente. Enquanto a metafísica permanece na linha do saber da contemplação da verdade, a poesia se mantém na linha do fazer e da deleitação da beleza. A diferença é capital e não pode ser desconhecida, sem grave dano. Uma, capta o espiritual em uma ideia e pela intelecção mais abstracta, a outra o entrevê na carne e por uma extremidade do sentido que a inteligência aguça; uma, para gozar de sua posse, tem de retirar-se para regiões eternas, a outra o acha em todas as encruzilhadas do singular e do contingente; ambas procuram um supra-real que a primeira deve atingir na natureza das coisas e à segunda basta tocar em qualquer símbolo. A metafísica anda à cata de essências e definições, a poesia se contenta com qualquer forma que brilhe, de passagem, com o menor reflexo de uma ordem invisível. Uma isola o mistério para conhece-lo; a outra, graças aos equilíbrios que constrói, o maneja e utiliza como uma força desconhecida... Poesia, neste sentido, não é evidentemente, privilégio de poetas. Força todas fechaduras, espera-vos onde menos a imagináveis encontrar.

Jacques Maritain, em Arte e poesia (1947, pp.09 e 10)

 

 

 

 

Pela poesia se vai até à verdade

07
Dez23
 
 
Hoje, cá dentro, houve festa...

Alcatifei-me de veludo azul,
fiz pintar a Ternura os meus salões,
e pus cortinas de tule...

 

IMG_20231206_103351.jpg

Mas não chamei grandes orquestras
nem um clarim, a proclamá-la:
mandei tocar, em mim,
uma música assim de procissão
que levou os meus sentidos
a nem sequer se sentirem, de embevecidos...

 

IMG_20231206_110935.jpg

Hoje, cá dentro, houve festa...
E, se houve festa e veludos,
e musica azul, e tudo
quanto digo,
foi somente porque a Graça
desceu hoje a visitar-me. 

 

IMG_20231206_110953.jpg

E eu, que vivo de Infinito
as raras vezes que vivo;
eu, que me sinto cativo
no pouco espaço que habito,
onde a presença de dois,
por ser demais, me embaraça,
deixei logo o meu lugar,
para dar lugar à Graça.

 

IMG_20231206_111034.jpg

Não tinha pés: tinha passos;
não tinha boca: era beijos;
não tinha voz: era como
se o folhado e a maresia
se tivessem combinado
pra cantar «Ave, Maria...»

 

IMG_20231206_111040.jpg

Foi então que vivi; então que vi
os poucos metros que vão
da minha Serra às Estrelas:
é que eu, sendo tão pequeno
que nem às vezes me encontro,
andava ali a pairar,
e o meu fim estava nelas
e o meu princípio no Mar.

 

IMG_20231206_111058.jpg 

A Graça, cá dentro, era

a varinha de condão
que me guiava no Ar.
E que bem me conduzia!
Parecia que eu sentia
as mesmas ânsias e a alegria
da Noite quando, no ventre,
já sente os gritos do Dia.

 

IMG_20231206_111322.jpg

O poema é de Sebastião da Gama, o poeta da Serra da Arrábida, as fotografias foram tiradas por mim ontem na Serra.