Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Daqui até ao Natal -23

10
Set24

IMG_20240910_125029.jpg

Por onde andei, o dia hoje esteve para o fresco, o céu apresentou-se azul, e a maior parte das árvores erguiam os ramos ao alto, tal como numa prece, ergo eu também os olhos ao alto, numa prece de gratidão por poder desfrutar do momento, é assim basicamente que rezo, e acreditem há que me critique, como se repetir e repetir palavras fosse de mais valor. 

Se amássemos em uníssono a Natureza, o que de mal podería acontecer?

 

Onde os frutos maduram:
sal e sol em minhas veias
luz e mel em boca alheia.

Onde plantei
a alta acácia das febres
eu mesmo me deitei,
para ser a raiz da semente,
e da madeira e seiva
se fez o meu corpo.

Agora,
Chove dentro de mim,
em minhas folhas se demoram gotas,
suspensas entre um e outro Sol.

Em mim pousam
cantos e sombras
e eu não sei
se são aves ou palavras.

Mia Couto, in “Vagas e Lumes”

IMG_20240910_125039.jpg 

Um passarinho pediu a meu irmão para ser uma árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol,
de céu e de lua mais do que na escola.

No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore, aprendeu melhor o azul.
E descobriu que uma casa vazia de cigarra, esquecida no tronco das árvores só serve para poesia.

No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores
são vaidosas. Que justamente aquela árvore na qual meu irmão
se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o
entardecer dos pássaros e tinha ciúmes da brancura que os
lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com as borboletas.

Manoel de Barros, in “Poesias Completas”

 

Poemas retirados de   

(um projeto que é uma agradável surpresa)

Refúgio

"quero o bracejar dos pássaros"

23
Jan23

Surrealistly 97.jpg Ilustração Surrealistly

 

Hoje acordei com a dor das árvores;
estou de pé e o meu tronco sustém
o vazio e a solidão dos ramos
côncavos de espera,
impacientes de ternura.
Quero o bracejar dos pássaros,
ser refúgio dos ventos que me procuram,
tornar-me na folhagem que te abriga,
ser o ninho na tua noite, aberto
com a inquietação e a serenidade
dos rumores das aves mais tardias.
Não, desta vez não vou ...
 
Poema Lília Tavares

Alegra-te

Árvore de Natal

14
Dez22

aquele abraço.jpg 

Ilustração Holly Warburton

 

O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.

Clarisse Lispector