Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

O que são os deveres humanos?

27
Nov17

IMG_6932.JPG

 

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. 


Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? 


Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 


Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 

 



José Saramago, in Diálogos com José Saramago

 

 

 

Alice Alfazema

 

Perdes o entusiasmo quando sentes que te repetes na vida?

14
Jul17

 

Ilustração Egene Koo

 

 

 "mais comummente, o termo repetição evoca a similitude na reprodução da palavra ou do gesto, a esclerose do hábito, 'o mesmo no mesmo'. Ao contrário, a retomada kierkegaardiana no sentido espiritual, existencial, é um segundo começo, uma vida nova, esta nova criatura, reconciliada ('a reconciliação é a retomada sensu eminentori'); é sempre eu, o mesmo, entretanto sempre outro, a cada instante. " (VIALLANEIX, 1990, p.57)

 

 

 

Ilustração Anna Silivonchik

 

 

 

"Alguém vem à análise, o acolhemos sem preconceitos, sem pressupostos, sem saber, sem memória, o acolhemos no início do seu caminho de fala connosco. No entanto, ele veio porque tropeçou no seu caminho, porque há para ele um osso, uma pedra no seu caminho. Nós o convidamos a falar, e o que nos orienta em nossa escuta é que há, no caminho da sua fala, um osso. Antecipamos — talvez seja a única antecipação a que possamos nos permitir — que sua fala vai girar em torno desse osso, em espiral, circunscrevendo cada vez mais perto, até, se posso dizer, esculpir o osso. " (MILLER, 1998, p.39)

 

 

 

Alice Alfazema