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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Daqui até ao Natal - 11

29
Ago24

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Se a alegoria consiste num jogo intelectual em que uma série de qualidades fixas pertencentes a um reino serve de correspondente a uma série de qualidades fixas pertencentes a outro reino (de modo que uma “tradução” literal seja possível), um símbolo representa a identificação emocional de um complexo de sentimentos a um objeto exterior, o qual, uma vez que se tenha estabelecido a identificação original, produz imagens sempre novas, com ritmo e desenvolvimento próprios, nem sempre passíveis de tradução. O símbolo evolui continuamente no tempo, ao passo que a alegoria se fixa para sempre.
(Sptizer, 2003, pp.67-68)

 

Dizem por aí que a poesia ajuda a exercitar a mente, a poesia é toda ela um jogo intelectual entre quem escreveu e quem lê, sobretudo leva-nos a outros mundos e desperta-nos para outras visões, tudo isso é um exercício mental, ter ou não ter tempo para ler poesia é uma escolha, um simples verso leva menos de um minuto a ler, no entanto, o benefício alcança largamente muitas dezenas de minutos, as analogias presentes despertam a criatividade, tal como quando te assomas à janela para veres a tua paisagem. Num mundo de imagens volantes a poesia até parece estar presa ao papel, ou a um ecrã, ou até num timbre, mas é uma falsa prisão, porque se liberta em cada leitura ou declamação, vai voando de boca em boca, do olho ao cérebro.

 

 

A metafísica, escrevi eu, busca também o espiritual; mas de maneira totalmente diversa, e tendo um objecto formal completamente diferente. Enquanto a metafísica permanece na linha do saber da contemplação da verdade, a poesia se mantém na linha do fazer e da deleitação da beleza. A diferença é capital e não pode ser desconhecida, sem grave dano. Uma, capta o espiritual em uma ideia e pela intelecção mais abstracta, a outra o entrevê na carne e por uma extremidade do sentido que a inteligência aguça; uma, para gozar de sua posse, tem de retirar-se para regiões eternas, a outra o acha em todas as encruzilhadas do singular e do contingente; ambas procuram um supra-real que a primeira deve atingir na natureza das coisas e à segunda basta tocar em qualquer símbolo. A metafísica anda à cata de essências e definições, a poesia se contenta com qualquer forma que brilhe, de passagem, com o menor reflexo de uma ordem invisível. Uma isola o mistério para conhece-lo; a outra, graças aos equilíbrios que constrói, o maneja e utiliza como uma força desconhecida... Poesia, neste sentido, não é evidentemente, privilégio de poetas. Força todas fechaduras, espera-vos onde menos a imagináveis encontrar.

Jacques Maritain, em Arte e poesia (1947, pp.09 e 10)

 

 

 

 

No olhar

18
Fev21

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Ilustração  Paola Castelló -La Maga-

 

Quando me vejo ao espelho, centro a minha atenção na expressão do olhar, no  seu contorno, e nalguns raios vermelhos que rodeiam a íris, e sei o que vai para além disso, sei que a pálpebra direita está mais descaída porque durmo para esse lado, sei que o tempo esfumou-se, e o meu olhar perdeu o branco cristalino, e também o fulgor da alegria. De certa maneira, os olhos são como as nossas mãos, reflectem-nos, acusam-nos do que fizemos e do que não fizemos. Os nossos olhos vão minguando à medida do dia a dia, e com isso deixamos para trás aquilo que pouco nos importa, somente voltam a brilhar quando queremos manter o coração em sintonia com a visão. E isso pode acontecer por qualquer razão.

Luxo

13
Nov20

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Ilustração Edward B. Gordon

 

A mulher do vestido verde espera, põe as mãos na cintura para clarear os pensamentos, como se aquela linha que separa a base do resto tivesse a capacidade de lhe levar para outros patamares. É um vício pensar assim. Enquanto se apoia nas suas próprias mãos, não sente necessidade de ninguém. 

Podia olhar o horizonte infinitamente e ficar hipnotizada pela luz opaca daquele pensamento que lhe invade agora a memória, é um luxo experimentar este transe. 

Retira as mãos da cintura, o momento acabou. 

 

 

Olhar

Verão 2020

21
Jun20

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Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, ensina-me a olhar!

 

 

Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços