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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Mano a mano

02
Mai22

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Descobri um ninho de peneireiro defronte da minha janela, do outro lado da rua numa varanda e dentro de um vaso abandonado de flores, já tinha notado que andavam por ali, de vez em quando davam o ar de sua graça no cimo da antena de televisão que fica no telhado do prédio defronte do meu, também ouvi diversas vezes aquele piar característico das aves de rapina, mas nunca os tinha observado como casal, a não ser no ecrã da televisão, não sei se já há cria, mas dá gosto vê-los, a fêmea dorme no ninho, o macho dorme na árvore perto dele, é curioso observá-los, e tão interessante saber que afinal basta tão pouco para podermos usufruir da vida selvagem, tenho visto que estão mais activos pela manhã, tal como se preparessem para ir para o emprego, sinto que quando os observo também estou a ser observada, recolho-me então meio intimidada, meio envergonhada por estar a ousar intrometer-me no seu direito à privacidade, mas sei que na minha identidade de primata amanhã voltarei a espreitar. Sei que também hei-de conseguir encontrar os binóculos que comprei algures para oferecer aos miúdos.

 

O Sol

15
Jun20

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Ilustração Elisa Chavarri

 

O Sol para uns é algo bonito, para outros não passa de algo comum a que nos habituamos a ver todos os dias, mesmo que esteja escondido, sabemos que está lá na mesma. Uns preferem ver o nascer do Sol, outros o pôr do Sol, eu prefiro o primeiro, gosto de expectativas, de começos, da manhã, da energia a crescer, de ver a Natureza numa azáfama para acolher um novo dia, os zumbidos das cigarras em pleno Verão sob um Sol abrasador. Encantam-me os pássaros que acordam cedo dando ordem de levantar para os mais dorminhocos. Há dias acordei às quatro e meia da manhã com um desses cantores matutinos. Acordem, acordem, dizia ele na sua voz melodiosa, que palavras bonitas podem dizer-se através do canto dos pássaros? Que entendemos nós, seres mais inteligentes do planeta, desta linguagem? E de outras? E até da nossa própria linguagem? Eu digo doce, mas há quem diga que não é, ou outros que dizem que é enjoativo, e se acrescento mais qualquer coisa há quem já não entenda que é doce e assimile outro estado de degustação.

 

E o Sol estava a ler, um livro muito complicado, porque a cada minuto tinha de parar para reflectir sobre a linguagem utilizada, uns diziam isto, outros aquilo, uns tantos aqueloutro, tudo misturado parecia que nada dizia com nada. Então decidiu escrever sem palavras, escreveu a Primavera, o Verão, o Outono, o Inverno, mas quase ninguém entendia que tudo era diferente, porque já tinha sido igual. E os anos passaram, uns morreram e outros nasceram, as paisagens ficaram diferentes, os pássaros cantaram, quase sempre o mesmo canto, e ninguém entendia a canção, porque para deslindar esta linguagem não se utilizam os sentidos. Observou-se e registou-se o som, e ele esteve sempre ali para quem o podia ouvir, anos e anos. Até desistirmos de entender e começarmos a sentir o que realmente andamos aqui a fazer.