Pouca coisa...pouco menos que um milagre
Segunda ou Domingo, partindo de Oslo. Na cozinha exígua eu e um colega preparamos os pratos pedidos. Fritadeiras, fornos, frigoríficos verticais, chapa quente, arca de gelados, um vai-vem de palavras e gestos, os nomes dos pratos, as especificações (sem gluten, camarões extra, uma gema de ovo suplementar num bife tártaro) a decoração final, o tiquet com o número da mesa junto a cada grupo de pratos prontos. Velocidade estonteante nos dias mais atarefados. Lá fora, os passageiros que não vejo mas imagino. Sentados numa das (certamente) salas mais bonitas do mundo; especialmente se à mobília juntarmos a vista que se abre para sul, navegando pelo fjord de Oslo abaixo. É, tipicamente, Segunda ou Domingo, o dia escolhido pelos reformados para a curta viajem de dois dias até à Alemanha e regresso. Chamamos-lhe, pensjonistenes tur. São estes dias de trabalho (só falo por mim) os mais agradáveis. Confeccionar os pratos para aquela diversidade de gente grisalha, a pele enrugada e movimentos tolhidos acusando o peso do tempo, imaginar-lhes o prazer de juntar a boa comida ao conforto da sala e à vista magnífica.
Pouca coisa, o tempero, o panado de oiro estaladiço que esconde o filet de linguado, o polvilhar da pimenta e do sal sobre a cor viva da carne do bife tártaro e da gema de ovo, o raminho de funcho entre as patas do lagostim, os pingos de óleo com ervas trituradas a salpicar a mayonese e o fundo do prato. Pouca coisa se lhes devo principalmente a eles a construção desta sociedade justa e igualitária que pude ver e testemunhar. Na história da humanidade (ou da infâmia dela), pouco menos que um milagre.
Texto retirado do blogue Âncoras e Nefelibatas