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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Os mais antigos

18
Abr21

 

Hoje, fui comprar legumes e peixe fresco, aquilo ali é o meu templo, onde as cores da criação se acumulam nas bancadas dos produtores locais, dando um ar multicultural à "Praça" - em Setúbal o mercado municipal  é chamado de praça pelos mais antigos, e assim de repente lembrei-me, que as pessoas idosas em Setúbal eram chamadas de "mais antigos", porque não é velho de deitar fora, nem idoso de limitado, mas antigo de nobre, que pode ser valorizado - vi então nas mármores das bancadas  do peixe, pescadinhas de rabo-na-boca, empilhadas em cima umas das outras, mais longe haviam salmonetes, noutras pampos, os peixe-espada tinham os olhos tão esbugalhados que mais pareciam lobos-maus do mar, os chocos ainda luziam, abroteas, corvinas e pargos, luxuria marinha dos mais variados sabores, comprei pata-roxa para fazer de caldeirada. 

À medida que ando por ali, vejo que as pedras que forram aquele chão estão lisas e brilhantes, parecem um tapete já muito usado, acusando os milhões de vezes em que foram pisadas. Por todo o lado a vida vibra, as centenas de flores que apelam ao olhar, é uma primavera em cada ramo. Ramos de hortelã perfumam o ar, junto com alecrim, poejo, e outras das quais não me lembro do nome. Pão fresco de várias regiões, queijos frescos e secos, de ovelha, de vaca, de cabra, curado, meia cura, amanteigado. Mel de rosmaninho para acompanhar.

Ao fundo vejo o belíssimo painel de azulejos azuis e branco, onde os marítimos se encostavam para fumar e falar sobre a faina, as vozes do mar, as vozes no ar, não tanto burburinho como antes da pandemia, apenas um apontamento daquilo que já foi. Trás-me à memória as minhas vozes, aquele som transporta-me para lá do tempo. A minha mente vagueia acima, buscando reconhecer alguma, mas são apenas fragmentos. E foi ali que aprendi a escolher o peixe, os legumes e as frutas. A andar depressa por entre a multidão, a saber decidir qual o melhor preço, comparando a melhor qualidade. 

E os anos passaram e sinto que começo a ser uma pessoa antiga, carregada de memórias e saudades que não posso matar, não que isso me deixe mais triste ou mais alegre, mas antes que me dê vontade de conta-las a alguém. 

 

Caldeirada de pata-roxa

30
Jul20

 

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Ponho o tacho grande em lume brando e rego com azeite o seu fundo. Lá dentro coloco uma folha de louro, entretanto vou cortando em rodelas finas uma cebola grande, às vezes ponho duas, atiro-as para dentro do tacho, enquanto fico a ver os salpicos do azeite que se junta à cebola, começa o processo de refogar. Vou então cortar o pimento verde em tiras finas, enquanto o limpo de sementes a cebola torna-se loura, jogo lá para dentro o pimento. O cheiro intensifica-se. Passo aos tomates, uns quatro pelo menos, bem maduros, para dar cor ao prato e sabor ao mar. Lavo-os e tiro-lhes a rama verde, não os descasco, corto-os em rodelas não muito finas, que vou colocando por cima da cebola e do pimento, tempero com sal e junto-lhes uns dentes de alho em fatias fininhas, talvez quatro, pimenta moída na hora. O lume brando vai fazendo das suas e, mistura devagar os sabores e as cores. Vou buscar as batatas, são olho de perdiz, de casca fina, descasco-as e corto-as em rodelas de forma a cozinharem rapidamente. Coloco-as por cima dos tomates, ajeito-as para que caiba também o peixe. Escolhi pata-roxa,  retiro  o peixe da água, que serviu para retirar o excesso de sangue, e faço a última camada dentro do tacho, ajeito os fígados do peixe, iguaria única que fica maravilhosa em cima de uma fatia de pão cozido a lenha. Rectifico os temperos e tapo o tacho. Olho para o relógio e aguardo que o milagre aconteça. Lá dentro, devagarinho, os sabores do Mar se misturam com os da Terra. Antes de servir tenho de lhes dar um abanão.

 

 

Peixe frito e arroz de tomate

20
Out19

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Num destes Sábados levantei-me cedo e fui beber um café à beira-rio, estive por ali enquanto me apeteceu e até caminhei pela praia, estava um dia de vento, com algumas nuvens, um frio ligeiro no ar, as gaivotas voavam em círculos, dando guinchos de vendaval. Elas sabem. Havia também pombos e outros pássaros abrigados nas rochas que pareciam esculpidas na falésia. As ondas rebentavam de mansinho na areia, um cheiro a maresia, e algas deixadas na praia. A Serra de um verde escuro ao longe com o céu cinzento por detrás.

 

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Saímos dali, já quentes pela caminhada e fomos à praça (Mercado do Livramento - Setúbal) ao peixe e aos legumes, quando entro ali é como se entrasse num templo, olho para aquele azulejo magnifico e lembro-me de quem ali se encostava, aquela azáfama dá-me uma energia renovada, as cores dos legumes e o cheiro a peixe transportam-me para outro tempo. Percorro então as bancadas do peixe para ver o que quero, claro que já sei onde vou comprar, mas tenho de manter este ritual, vejo um espadarte com quase quatrocentos quilos, pargos rosados, garopas, pregados, salmonetes, fanecas, lulas, chocos, carapaus, enxarroco...conheço todos, nada daquilo é novidade para mim, sei a que sabem, sei como os cozinhar, sei como se escama, sei quando é fresco. 

 

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Gosto de me passear por ali, de me esquivar aos salpicos do peixe a ser amanhado, finjo que não percebo que os vendedores fazem de propósito em dar uma traulitada mais forte para que aquilo espirre e molhe os que por ali andam só a tirar fotografias como se estivessem num museu ou num safari. Aquela é a vida real, onde as mãos se enrugam pela água, as escamam se colam à pele, e o cheiro do peixe se entranha nos poros. 

 

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Compro raia, digo que não é preciso separar as postas, o senhor agradece-me, quero também carapaus para alimar, trago dois sacos cheios. De seguida vamos aos legumes. Primeiro damos uma volta de reconhecimento, vemos o que se passa aqui e acolá, interiorizamos aquilo que vimos e vamos à descoberta dos preços e da frescura. 

 

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As bancadas dos legumes são sempre muito coloridas, há pilhas de legumes de vários tons de verde, outras vermelhas, pedaços de abóbora cor-de-laranja, castanhas, uvas... as pessoas fervilham em redor dos vendedores, as bancas estão cheias do que de melhor há na terra e de fruta da época, compro tomates, alho-francês, cebolas, batatas, coentros...

 

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Vamos então para casa, lavo e amanho os carapaus e deixo-os de molho em água limpa, para que fiquem limpos de sangue, mais tarde vou pô-los no sal de um dia para o outro, para que os possa alimar. Passo para a raia, que está toda ranhosa, lavo-a e arranjo as postas, deixo-a também em água, até vê-la completamente branca. Quando isso acontecer salgo-a. 

 

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Coloco então o óleo numa frigideira com alhos,  deixo aquecer até os alhos fervilharem, depois de salgada, passo a raia por farinha, depois por água e de seguida meto a fritar. Entretanto também faço o arroz de tomate, descasco o tomate, a cebola, alho, louro, um fio de azeite, deixo estar em lume brando até ver o tomate desfeito e com molho, junto água, espero que ferva, ponho especiarias e sal, acrescento o arroz e os coentros, vou virando o peixe e lembro-me que tenho de fotografar isto para por no blog.

 

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Tirei as fotografias à pressa, não gosto de comer o peixe frio, muito menos o arroz, que perde o caldo. A casa ficou a cheirar a peixe frito, eu gosto desse cheiro, para mim reporta-me à infância e a momentos felizes.

 

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Boa semana!