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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Pintura de várias vidas

09
Jun22

paula rego.jpg 

Pintura de Paula Rego

Ontem morreu a Paula Rego, fenomenal na arte de desenhar a realidade em bruto, mas ontem também soube que morreu a Teresa, e que já lá vão quatro anos, não me lembro da cara da Teresa, nem da sua voz, há muitos anos que não nos víamos, morreu ainda jovem a Teresa, deixou três filhos que não conheço, da Teresa apenas, e é um apenas tão grande, me lembro dos dias incontáveis de brincadeiras em conjunto, das ideias infantis levadas à realidade, das corridas loucas pela encosta abaixo, tendo nas costas a Arrábida, e na direita o Sado e o Atlântico. 

O rio

07
Ago11

 

 

 

 

Do novelo emaranhado da memória,

da escuridão dos nós cegos,

puxo um fio que me parece solto.

 

Devagar o liberto,

de medo que se desfaça entre os dedos.

 

É um fio longo,

verde e azul,

com cheiros de limos,

e tem a macieza quente do lodo vivo.

 

É o rio.

 

Corre-me nas mãos,

agora molhadas.

 

Toda a água me passa entre as palmas abertas,

e de repente não sei se as águas nascem de mim,

ou para mim fluem.

 

Continuo a puxar,

não já memória apenas,

mas o próprio corpo do rio.

 

Sobre a minha pele navegam barcos,

e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.

 

Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como apelos imprecisos da memória.

 

Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.

 

Ao fundo do rio de mim,

desce como um lento e firme pulsar de coração.

 

Agora o céu está mais perto e mudou de cor.

 

É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.

 

E quando num largo espaço o barco se detém,

o meu corpo despido brilha para debaixo do sol,

entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.

 

Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.

 

Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.

 

Imóvel,

espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas.

 

Então,

corpo de barco e de rio na dimensão do homem,

sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.

 

Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.

 

Haverá o grande silêncio primordial quando as mão se juntarem às mãos.

 

Depois saberei tudo.

 

 

 

José Saramago

 

 

 

Alice Alfazema

Chuva - Mariza

03
Out10

As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir

 

Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir

 

São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder

 

Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer

 

A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera

 

Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera

 

A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade

 

Jorge Fernando