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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

21/02/2021

21
Fev21

estrela.jpeg

Ilustração  Romain Lubière

 

Não escreverei o poema.


Direi simplesmente
que o colosso de certeza na humanidade do Universo
é inapagável
como o brilho das estrelas
como o amor dos teus olhos
como a força da harmonia dos braços
como a esperança nos corações dos homens.
Inapagável
como a sensual beleza
da agilidade das feras sobre o campo
e o terror transmitido dos abismos.


Direi simplesmente
Sim!
Sempre sim
à honestidade dos homens
ao viço juvenil da sinfonia das árvores
ao odor inesquecível da natureza
que apaga os possíveis cheiros amargos.


Sim!
à interrogação mágica de Talamugongo
do Cunene ao Maiombe;
ao sonoro cântico de ritmo subterrâneo
e dos chamamentos telúricos;
aos tambores
apelando para o fio da ancestralidade
esbatido além;
ao ponto interrogativo de Madagascar.


Sim!
às solicitações místicas à musculatura dos membros
ao quente das fogueiras endeusadas
na lenha das sanzalas;
às expansões magníficas das faces
esculpidas no alegre sofrimento das quitandeiras
e no ritmo febril das sensações tropicais;
à identidade
com a filosofia do imbondeiro
ou com a condição dos homens,
ali onde o capim os afoga em confusão.
Sim!
à África-terra, à África-humana.


Direi sim
em qualquer poema.
E esperemos que a chuva pare
e deixe de molhar os chilreantes passarinhos
sobre as três árvores da minha única paisagem
e o desejo de escrever um poema.
                       Isso passa

 

Poema de Agostinho Neto

Vestida de noite

08
Out20

estrelas.jpg

 

Olhar a noite e ver as estrelas é das coisas mais simples e intrigantes da vida. Sentirmos o quanto somos minúsculos ao olharmos o céu e pensarmos o que poderá existir mais além.  É no cheiro da noite e nos seus barulhos fugazes, que a escuridão acolhedora se pode transformar em assustadora. Um mundo desconhecido à nossa frente.

 

noite brilhante.jpeg

 

A aldeia não existe,
exceto quando uma árvore de cabelos escuros desliza
no ar abrasador como uma mulher afogada.
A aldeia está em silêncio. A noite fervilha com onze estrelas.
Ó, noite estrelada! É assim que
eu quero morrer.

Movimento. Elas estão todas vivas.
Até a lua incha em sua rigidez alaranjada
para, como um deus, afastar os filhos de seus olhos.
A velha serpente invisível engole as estrelas.
Ó, noite estrelada! É assim que
eu quero morrer:

nessa fera da noite veloz,
sugada por esse grande dragão, para me separar
de minha vida sem qualquer bandeira,
sem entranhas,
sem lamento.

 

vestida de noite.jpg

 

Nisto tudo não há separação, é apenas uma continuidade. Vestimo-nos então de noite para esperarmos o dia. 

 

 

 

Poema é de Anne Sexton, as ilustrações são de Anita Klein.