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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Diário dos meus pensamentos (34)

22
Abr20

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A  portaria cheirava a mofo. A escola estava vazia, não só há um afastamento social, como também há uma anulação das vozes, é como se as pessoas poupassem em palavras para gastarem em pensamentos. As nêsperas estão todas depenicadas pelos pássaros, as avencas levaram um desbaste valente, hão-de crescer, como crescem sempre. Os pombos continuam a procriar, a árvore de maçã riscadinha está cheia de flor, este ano talvez vingue alguma maçã. Alguns pais vieram buscar os livros aos cacifos dos filhos, outros os trabalhos escolares para fazerem em casa, alguns vão recebê-los pelo correio. Uns ficaram admirados com a lixarada que viram dentro dos cacifos, uma mãe reconheceu a caixa da comida há muito perdida, viram também um coração desenhado com uma declaração de amor. Eu ri-me, nada daquilo é novidade para mim. Até elogiei a arrumação, dizendo que há piores. Perguntaram-me se tinha saudades deles, perguntei também aos pais se tinham saudades nossas, riram-se, a mãe disse que tinha saudades da escola, ela é que tinha, ri-me.   

Conversas da escola - 27 de Março de 2020

28
Mar20

Hoje a escola estava vazia, os alunos estão em casa de quarentena, muitos têm aulas virtuais, outros por e-mail, e há os que não têm nada disso, ou porque não têm Internet, ou porque os pais não têm capacidade para os orientar. No entanto, a escola física permanece viva, cheia de bichos, eu diria até que está entregue a eles, é uma pausa que provavelmente trará mais desigualdades sociais, poderá no entanto aumentar a solidariedade, mas apenas se as pessoas mudarem de atitude, porque se continuarem elitistas tudo isto terá sido em vão. É bom que não se esqueçam rapidamente, e que fique para a História, e  que seja estudado em Psicologia e em Sociologia, tal como em Antropologia e Ciência Política, e nas mais variadas Ciências Sociais, para que em conjunto se reflicta e valorize a diversidade da vida humana, as suas consequências e os modos de como podemos ultrapassar questões que dizem respeito a todos. 

 

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A borboleta transforma-se num processo de confinamento ao casulo, através dele alcança o voo, mesmo que seja rápido é uma experiência que lhe confere chegar até onde nunca tinha ido. 

 

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A fruta adoça presa na árvore e esta presa na terra dá o seu fruto a quem anda por aí, como prova de carinho por quem lhe espalha as sementes, é vida multiplicando-se.

 

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A flor concede aos polinizadores o seu pólen e dá-nos ainda uma paleta de cores que nos brindam nesta Primavera, dando-nos ânimo, para que possamos entender que a saudade é uma palavra que agora pertence a todos.  

 

(estas fotografias foram tiradas por mim na escola durante este dia)

 

 

Diário dos meus pensamentos (8)

Um dia quase normal

27
Mar20

Hoje foi um dia quase normal, levantei-me e fui ao pão, de seguida passei o Ginjas, comi o pequeno-almoço e bebi um café enquanto me actualizava nas notícias. Preparei o meu lanche almoçarado para levar para o trabalho, meti uma máscara dentro da sacola, um frasco de álcool gel, lenços de papel. 

 

Saí para a rua e o sol resplandecia, estava fresco, fui ver como estava a minha varanda, ainda não tinha apreciado o que tinha feito ontem. Gostei, está como o imaginei, simples mas intenso. Não fiz um arco-íris. Fiz antes um girassol com um pé de riscas coloridas e dois corações. Espero que entendam o significado desta flor. Continuei e fui apanhar o autocarro.

 

Ia pouca gente no autocarro,  todos com semblante triste, os vidros estavam abertos e uma fita vermelha e branca separava o espaço do motorista dos restantes. Chegando à minha paragem levantei-me e acenei ao motorista, conhece-o há muito tempo. Chama-se João. Ele devolveu-me o cumprimento fazendo um aceno com a cabeça através do espelho. Desci e retirei o frasco do álcool, desinfectei as mãos. 

 

Atravessei a estrada, quase não havia trânsito, nas bermas as papoilas tinham um vermelho intenso, não me lembro de ver aqui destas com um  vermelho tão garrido. Pensei, a Natureza é tão inteligente, dá-nos vivas com estas cores, são lições de ânimo.  

 

Entrei na escola e fomos abrir o espaço, arejar, limpar, estava tudo tão calmo, fui dar uma volta pelo recinto, regar os canteiros, ver se estava tudo bem. Na horta os legumes cresciam a seu belo prazer, um casal de melros estava a comer as alfaces, os caracóis fizeram uma festa nas couves e as favas estavam cheias de piolhos, os brócolos estavam amarelados e as ervilhas eram apenas umas ervas recém-nascidas. 

 

Contornei os blocos de salas, um gato gordo e simpático veio ter comigo, estivemos à conversa, no meio das ervas que já estavam altas apareciam os tocos das grandes árvores que cortaram há cerca de dois anos, fui contá-las para ter a certeza, eram quatro, gigantes deitados a baixo, explicação: durante o ano num período aproximado de duas semanas deitavam sementes que pareciam algodão, muitas vozes reclamavam que lhes faziam alergia e cortaram-lhes o cepo. A mim acusaram-me de defensora de árvores. Depois vieram plantar umas novas com pompa e circunstância, mas nada vingou.