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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Desígnios

Árvore de Natal

08
Dez22

Já aqui disse que gosto de dias de tempestade, gosto de apreciar a Natureza na sua suprema vontade, a ideia de que somos apenas marionetas neste universo manifesta-se no pouco que valemos na sua vontade. O facto de não respeitarmos  - e de ainda não admitirmos - que vivemos em cima de um sistema muito inteligente e que por ele somos controlados, faz-nos ainda mais vulneráveis aos seus desígnios.

 

– Menino, vem para dentro,
olha a chuva lá na serra,
olha como vem o vento!

– Ah, como a chuva é bonita
e como o vento é valente!

– Não sejas doido, menino,
esse vento te carrega,
essa chuva te derrete!

– Eu não sou feito de açúcar
para derreter na chuva.
Eu tenho força nas pernas
para lutar contra o vento!

E enquanto o vento soprava
e enquanto a chuva caía,
que nem um pinto molhado,
teimoso como ele só:

– Gosto de chuva com vento,
gosto de vento com chuva!

 

Poema de Henriqueta Lisboa

 

Ao navio Sagres

A brisa esfaimada do Atlântico

22
Out22

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Hoje fui celebrar a chegada da Beatrice. A depressão atlântica, numa brisa esfaimada vinda do Oceanso Atlântico encharcou-me a roupa até aos ossos, mas soube-me bem, levou-me àquela velha sensação de estar-se vivo, de pertencer a algum lugar, de fazer parte de um todo.

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Os homens perdem-se num lago pútrido de ilusões
Nem o sul já conseguem vislumbrar
Chacinam as criaturas destroem as florestas
Para construírem a ferro e betão catacumbas de podridão
Esqueceram que devem abraçar a natureza com paixão
Os oceanos as montanhas os vulcões
Os maremotos as tempestades as grandiosas monções  
 
Ana Maria Oliveira
 
 

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Navegar, navegar pelas emoções, que é como quem diz: deixar-se ir pela reflexão sobre si mesmo, enfrentar as próprias tempestades, amigos como barcos salva-vidas, remar, remar assim perdidamente, como quem quer desaparecer, remar sem rumo, num barco preso num convés.

 

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Na desordem da tempestade, a ordem das amarras, o brio dos nós de marinheiros experientes, a ordem da tarefa cumprida, o desassossego do canto das gaivotas, o céu cinzento, as gotas de água que escorrem no rosto, um fumo acesso num cigarro molhado, a barba húmida do sal.

 

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Tudo ali está limpo, as tábuas alinhadas do convés quase que reflectem o céu, os dourados brilham sobrepondo-se às gotas de água vindas das nuvens cinzentas, naqueles poucos metros flutuantes tudo ali tem um propósito, nada é ao acaso, tanto sal derramado, tanto sol por descobrir.

  

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Ergue-se o mastro, qual pilar, escadas de cordas, bandeiras ao vento, encharcadas mas mantendo a intenção, força de braços, força de espírito, liberdade, num rumo a vários rumos. A madeira não geme, de tanto saber adaptou-se aos braços e aos gritos, à loucura dos dias tristes, ao deslumbre das fantasias, aos amores, a tudo.

 

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Vinda de longe, de muito longe, o que eu andei para aqui chegar, tantas milhas, tanto sal, tantas lágrimas, tantos risos, tantas saudades, no ar há um cheiro a comida, que cheira a casa, a conforto, o marinheiro diz-me que é strogonoff, e eu queria comer ali, tenho em mim saudade de navegar, é estranho que assim seja, eu que nunca naveguei, mas está-me no sangue esta alma de marinheiro.

 

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A vida redonda, em círculos, a vida a flutuar numas tábuas feitas à medida do artesão, mestre em conhecer as ondas, homens ao mar, do mar, lobos marinhos, mão calejada do sal, passo gingado, equilíbrio, paciência, trabalho de equipa, brio, organização, porto de abrigo, barra, farol, estrela do mar que flutua.

 

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