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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Ironia na sociedade e na solidariedade europeia

01
Jun15

 

"Escrevo de Atenas, onde me encontro a convite do Instituto Nicos Poulantzas para discutir os problemas e desafios que enfrentam os países do Sul da Europa e as possíveis aprendizagens que se podem recolher de experiências inovadoras tanto na Europa como noutras regiões do mundo. Convergimos em que o que se vai passar nos próximos dias ou semanas nas negociações da Grécia com as instituições europeias e o FMI serão decisivas, não só para o povo grego, como para os povos do Sul da Europa e para a Europa no seu conjunto.

 

O que está em causa? Defender a dignidade e o mínimo bem-estar de um povo vítima de uma enorme injustiça histórica e de políticas de austeridade (para além do mais, mal calibradas) que espalharam morte e devastação social (bem visíveis nas ruas e nas casas) sem sequer atingir nenhum dos objetivos com que se procuraram legitimar. Não admira que o primeiro ponto do programa de Salónica do Syriza seja o alívio imediato da grave crise humanitária.

 

Com um envolvimento militante que há muito desapareceu dos cinzentos políticos europeus, a vice-ministra para a Solidariedade Social, Theano Fotiou, fala-me do modo como está a ser organizado o resgate dos que caíram em pobreza extrema (programas de alimentação, eletricidade e tratamento médico gratuitos), não deixando de salientar a cooperação, de algum modo surpreendente, que tem tido dos bancos gregos para gerir o sistema de pagamentos. Para além das políticas de emergência, o programa do Syriza, tal como o de Podemos na Espanha, é um programa social-democrático moderado. Esta é a grande ironia da Europa: os sociais-democratas de ontem são os liberais de hoje; os revolucionários de ontem são os sociais-democratas de hoje.

 

As principais linhas vermelhas que o Syriza não pode deixar cruzar referem-se à redução das pensões e ao fim da contratação coletiva. Trata-se dos dois pilares principais da social-democracia europeia. Ao defendê-los, o Syriza está a defender o que há de mais luminoso no património político, social e cultural da Europa do último meio século. É uma defesa corajosa no processo de negociação mais assimétrico e desigual da história europeia (e talvez mundial) recente. Uma defesa que só não será solitária se puder contar com a solidariedade ativa dos cidadãos europeus para quem o pântano da resignação não é opção.

 

O que vem aí? Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado. Mas não é difícil ver nos sinais disponíveis mais razões para pessimismo do que para otimismo. Surpreendentemente, um desses sinais mais perturbadores para os gregos é o programa económico recentemente apresentado pelo PS português. A radicalidade conservadora de algumas propostas, sobretudo no domínio das relações laborais e das pensões (mais conservadoras do que as do PSOE espanhol e muito semelhantes às do novo partido conservador espanhol, Ciudadanos), leva a considerar que ele foi elaborado com inside knowledge, isto é, com conhecimento prévio e privilegiado das decisões, por enquanto secretas, que os "grandes decisores" europeus já tomaram em relação à Grécia e aos países do Sul da Europa.

 

Tanto no domínio das pensões (erosão das condições de sustentabilidade para justificar futuras reduções) como no das relações laborais (erosão fatal da contratação coletiva), o PS propõe-se uma política que viola as duas linhas vermelhas principais do Syriza e, que, aplicada entre nós, porá fim à mitigada social-democracia que conquistámos nos últimos 40 anos. Pré-anúncio de que o Syriza vai ser trucidado para servir da vacina contra o que pode ocorrer na Espanha, na Irlanda, em Portugal e mesmo na Itália? Não sabemos, mas é legítimo ter uma suspeita e uma certeza.

 

A suspeita é que os "grandes decisores" visam atingir o coração do Syriza, fazendo com que parte dos seus apoiantes (sobretudo os que não dependem de ajuda humanitária) o abandonem, eventualmente com a promessa ardilosa de que sem o Syriza poderão obter mais benesses europeias do que com ele. A certeza é que, com a derrota do Syriza, os partidos socialistas que em tempos optaram pela terceira via saberão em breve que esta via é em verdade um beco sem saída."

 

Boaventura Sousa Santos



Ensaio retirado daqui.

 

Alice Alfazema

11
Fev13

 

Há mais aqui.

 

A Nossa Crise Mental Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político, moral e intelectual? 

A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo. 

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima). 

Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise. 

As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto. 

Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer. 


Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

 

 

Alice Alfazema

Aguenta coração

03
Fev13

 

Falar do sofrimento alheio revelando uma falta de discernimento entre o bem e o mal é revelador da inteligência própria daqueles que nada têm a acrescentar ao valor da vida e de um povo. Apenas acrescentam milhões em lucros, esses feitos precisamente à conta daqueles que aguentam. 

 

Poderá um homem ser feliz dormindo ao frio num qualquer banco de jardim? Poderá até ser livre, mas não é de sua escolha tal ato, é apenas consequência da estratificação social, das redes organizacionais que orientam a sociedade e das quais fazem parte cidadãos que se julgam acima da espécie e dos sentimentos dos outros.

 

O país até poderia ir para a frente se essas raízes fossem cortadas, mas elas estão demasiado enraizadas e servem de pontes para a ascensão social que tal feito é quase impossível, a não ser que hajam muitos jardineiros sociais.

 

 

 

Alice Alfazema