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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Entre a ponte e o céu

20
Abr19

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Eu estava na ponte e dei um salto até à outra margem, vi homens e mulheres vagueando apressadamente pelas ruas da cidade. Todos os dias era  a mesma coisa, passavam a ponte de um lado para o outro, num lado descansavam, no outro andavam apressados em rebanhos de gente que tem de cumprir horário. 

 

À noite a ponte iluminava-se e dava as boas-vindas aos astros e aos morcegos, corujas também lá apareciam. Um dia uma estrela ficou presa num pilar da ponte, julgava que aquelas luzinhas eram estrelas pequeninas e ia tentar ajudá-las, mas não, aquilo era coisa de gente, era iluminação para  acrescentar o dia e imitar a noite. 

 

A estrela ficou lá presa durante toda a noite, ela bem que tentou libertar-se, mas cada vez se enroscava mais naquele emaranhado de armações e parafusos, por fim resignou-se e deixou-se ficar quieta, à espera que as suas forças a abandonassem, sabia que não iria ter forças para voltar ao céu e já tinha saudades da vista lá de cima. Adormeceu.

 

Chegaram as primeiras horas da madrugada, os primeiros raios de sol vieram cumprimentá-la, a estrela acordou e viu-se a diminuir de tamanho, ficou tão pequenina que ninguém a conseguia ver, nisto eleva-se como que por magia, estava tão leve que num instante chegou ao pé das suas irmãs estrelas e lá do alto ficou a contemplar aquela ponte que unia as pessoas e que à noite parecia ter estrelas a brilhar para lembrar que o céu não fica assim tão longe.

O homem do talho

13
Jan19

Enquanto espero pela minha vez entretenho-me a observar o homem do talho. É baixo, moreno, tem umas sobrancelhas grossas e escuras e umas mãos grandes e tortas. Desde  à algum tempo que olho para as mãos do homem do talho, tem uma luva de malha de aço, quase um cavaleiro da época Medieval, trás a faca na mão, qual espada em riste, e desfere golpes rápidos e certeiros nos ossos do entrecosto.

 

É possível que lhe doam as mãos, os seus dedos estão deformados. As mãos muito vermelhas. Quando coloca a mão dentro da luva de malha de aço fá-lo com cuidado, depois coloca um elástico por cima da malha, para prender melhor a luva e não atrapalha-lo com a faca.

 

São horas e horas a cortar carne, anos a fio, ossos, peles, gorduras, carnes finas, carnes rijas, gente que quer assim, gente que quer assado. Deduzo que ganha uma miséria, possivelmente nunca terá outra profissão. 

 

A fila de gente que espera adensa-se e as suas dores também, vejo-lhe na cara um vago sofrimento, franze a testa quando maneja a faca. Ninguém parece ver isso. Atarefados olham para o tempo que o homem do talho demora a cortar a carne. Bom-dia! Em que posso ajudar?

 

 

Ginjas o pirata

15
Jul17

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Vivia na China um sacerdote rico e avarento. Amava jóias e as coleccionava, acrescentando constantemente novas peças ao seu maravilhoso tesouro escondido, que guardava a sete chaves, oculto de olhos que não fossem os seus.

O sacerdote tinha um amigo, que um dia o visitou e manifestou interesse em ver as jóias.

- Seria um prazer tirá-las do esconderijo, e assim eu poderia olhá-las também.

A colecção foi trazida, e os dois deleitaram os olhos com o tesouro maravilhoso por longo tempo, perdidos em admiração.

Quando chegou o momento de partir, o convidado disse:

- Obrigado por me dar o tesouro.

- Não me agradeça por uma coisa que você não recebeu - disse o sacerdote. - Como não lhe dei as jóias, elas não são suas, absolutamente.

- Como você sabe - respondeu o amigo, - senti tanto prazer admirando os tesouros quanto você, por isso não há essa diferença entre nós como pensa. Só que os gastos e o problema de encontrar, comprar e cuidar das jóias são seus.

 

 

 

 Histórias da Tradição Sufi, Edições Dervish, 1993

 

 

 

Alice Alfazema