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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Racismo e preconceitos

07
Mai20

Corria o ano de 1974, era a  minha primeira semana de aulas, no meu primeiro ano da escola primária, tínhamos acabado de sair da sala de aula e estávamos a caminho das brincadeiras feitas no recreio, quando oiço: não brinquem com aquela menina, porque ela é preta! Olho, e a miúda que disse aquilo estava de dedo em riste apontado para mim a rir-se, não compreendi aquilo, e nem tive tempo de reacção, pois a professora que estava atrás de nós fez ouvir a sua voz, não me lembro do conteúdo das suas palavras, apenas que começou com "isso não se diz", todos tivemos de ouvi-la, mas a que disse foi ainda chamada à parte para uma conversa mais abrangente. Sei que durante quatro anos, o tempo que passei naquela turma, nunca mais ninguém falou sobre o assunto, nem eu alguma vez falei com a tal miúda, não falei nisso em casa, aquilo para mim passou-me ao lado. Eu não tenho carapinha, nasci em Setúbal, passava o meu Verão praticamente na praia, a minha pele morena ficava bastante torriscada pelo Sol,  também não preciso de muito para isso, bastam-me três dias, e com o tempo chegaram muitas pessoas vindas do Ultramar, os chamados Retornados, apesar de muitos terem nascido por lá nunca se livraram dessa alcunha, eu conhecia muita gente vinda de Angola, dava-me com eles, sabia como se vivia lá porque eles me contavam, conhecia as suas comidas, até sabia como eram as suas praias, muita gente me perguntou se eu era de lá, eu respondia que sim, divertia-me com aquilo, da burrice das pessoas que olham para a cor da pele e fazem histórias na sua cabeça. Assim como apreciei a atenção dada na escola à profissão dos pais dos meus colegas, a mim nunca ninguém me pediu para fazer um trabalho sobre a profissão do meu pai, que era pescador, mas era habitual falar-se em quem trabalhava em escritórios e noutras artes parecidas, foi sempre muito interessante ver a vida dos outros, pelo prisma dos outros, mas também seria salutar aprender a diversidade e em como os diversos modos de vida se encaixam na sociedade e qual a sua importância em cada contexto. 

 

A mim não me surpreendem as declarações do André Ventura sobre os Ciganos, porque como ele há muitos, não só com os Ciganos, mas com uma infinidade de outros preconceitos, muitos dos quais tenho sentido na pele, por exemplo: quando digo que trabalho numa escola, perguntam-me logo se sou professora, digo que sou auxiliar, calam-se logo, é como se eu tivesse algo contagioso, assim como quando dizemos que temos piolhos, a reacção é essa. Ou então quando vou a entrevistas de emprego, e  me perguntam o que faço, a mesma reacção, se peço uma declaração com as minhas funções, adivinhem o que vem à cabeça de lista: limpeza dos espaços, já tive de pedir para colocarem aquilo em último, e ficam assim a olhar para mim como se eu fosse um alien. É muito difícil alguém triunfar num mundo preconceitoso, talvez por isso tantos dos nossos emigrantes sejam reconhecidos num outro país. Aqui ainda imperam muitos pressupostos vindos do tempo da outra senhora, alguns estão tão enraizados que servem de desculpa para não dar oportunidade a quem dá todos os dias o seu melhor.  

 

 

A Rainha Descalça

26
Jul19

a rainha descalça.jpg

 

Acabei de ler há dois dias A Rainha Descalça, de Ildefonso Falcones, já tinha lido outros dois livros deste autor, A Catedral do Mar e A Mão de Fátima, nos três senti a mesma escrita criativa e fascinante, com que o autor descreve a época e a história de Espanha e de vários personagens, não são histórias singulares, são sim de uma comunidade representadas por um ou vários actores, onde os sentimentos e os lugares nos ficam na imaginação, tal como fazemos com uma viagem que nos fica na memória. Descobrir pormenores históricos de lugares que conhecemos, sentir a narração sempre vibrante que nos cativa a cada página e depois ficar com aquele gosto amargo que o livro acabou, ler as últimas páginas devagar para saborear até ao último minuto, e chegar ao fim com a certeza de que já não sou a mesma que iniciou aquela leitura. São obras com alma. 

 

 

"Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte."

 


Carlos Ruiz Zafón in A sombra do vento