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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Recuso-me

02
Jan24

Estive ontem a ver um filme cuja estória se passava durante a segunda guerra mundial, o tema era sobre um homem alemão que não queria fazer juras a hitler, porque não concordava com o lema, mesmo que para isso fosse condenado à morte, o que foi, mas como ele dizia não iria assinar uma declaração para ser livre - ele já era livre. Foi incompreendido por todos os vizinhos, alguns familiares e outros que não entendiam  o que é viver sem ser-se agressivo. 

Quanto a mim vive-se hoje o culto da agressividade, tenho-me deparado com gente que se apregoa de frontal, de coração ao peito, que diz a verdade, acima de tudo a verdade, no entanto tenho constatado que nada mais é que a agressividade vestida de mentirinha, numa coisa mesquinha de ser que se julga superior, coisa que não é perecível, acima do Ser. Por todo o lado vemos que é muito mais admirada a pessoa agressiva do que aquela que é passiva, exactamente por esta conexão de que ser-se bom é uma coisa má, é algo que não leva a nada, que não somos guerreiros, determinados, como se o intimo estivesse ligado directamente com o mecanismo das acções que nos tornam rápidos.

E ele escolheu morrer para não deixar de ser quem era, e morreu livre, é mais fácil ser-se mau que bom, a bondade exige uma inteligência fina, pensamento e reflexão, a maldade é minimamente primária, coisa como o açúcar que dá energia num ápice, no entanto nos mina e vicia, tornando-nos prisioneiros de desculpas para o que fizemos, de entre elas a "verdade", coisa estúpida de se ser. 

Tantas verdades são apregoadas, palavras distorcidas até ao mais ínfimo pormenor, num dia têm um valor, no dia seguinte outro, mas como vivemos cada vez mais rápido, por vezes nem chega ao outro dia, tudo muda a toda a hora, os discursos, as vontades, o propósito, a verdade. 

Desfazem-se mentiras todos os dias numa banalidade desconcertante, importa é ter-se resposta pronta - que seja assertiva segundo a actual sociedade que pouco ou nada questiona -, dinâmica em termos de linguagem fluida e enriquecida segundo os melhores dicionários. O efeito contágio acelera o processo até o elevar ao topo da pirâmide, chegando lá nada mais há a fazer senão manter o equilíbrio, num esforço continuado para se ser assim, contudo ninguém é livre no topo.

 

Gratidão por desconhecidos

18
Set20

o elefante e o homem.jpg

Nesta imagem serena mora um homem que vê passar o tempo, e que sabe que só ele leva as mágoas para longe. E sabe  também que o tempo tem a capacidade de unir e separar, de ser cruel e bondoso. Todas as vidas que se cruzaram e separaram enquanto escrevi este paragrafo? Não sei, ninguém sabe, apenas o tempo, esse que passa e não o sentes.

Dedicar a nossa vida aos outros é uma tarefa árdua e longa, que exige uma dádiva constante. É maravilhoso vermos  que existem pessoas que se dedicam aos outros muito mais que a si mesmo. E fazem-no de sorriso no rosto, com gosto, num desprendimento total de posse. 

 

o hoem e a iena.jpg

 

A importância da bondade espontânea vê-se a cada gesto de carinho partilhado entre homens e animais. A bondade prova que a descrença vale tão pouco. Num mundo em que somos mais iguais do que aquilo que nos pregam. A sensação de partilha de um amor que nos é intrínseco.  

 

pangolin.jpg

 

O meu sentimento de gratidão por gente assim é enorme. Emociona-me esta entrega, estes sorrisos, esta vida simples, mas tão grandiosa. Compreendo este amor que não se explica facilmente em palavras, pois é um amor mais prático, feito de gestos, de escolhas, de decisões difíceis, de morte. É um amor de quem sabe que pode ser a última oportunidade para existir. 

 

 

 

 

Fotografias Wild Is Life ver mais aqui.

 

Micro contos - Bondade avulso

31
Ago18

 

Ilustração  Maggie Cole

 

 

Ela era muito atenta e raramente dividia o seu poder, gostava de ser boazinha. Espalhava atenção por onde passava, dando a sensação de estar em todo o lado. As pessoas prestavam-lhe vassalagem com sorrisos e festinhas, por vezes também utilizavam a língua. Então ela retirava do bolso do seu casaco um pequeno pacote de bondade e dava umas quantas gramas a quem achava que merecia por ter tido o melhor sorriso ou a língua mais comprida. 

 

 

 

Um pássaro azul, uma baleia azul, um mundo azul

30
Abr17

Ilustração  KD Neeley

 

 

As pessoas têm medo de serem bondosas, dizem-se de mau feitio, de quem não leva desaforo para casa. Ser agressivo é ser pró-activo, é ir para a frente é ser dinâmico a todo custo. As palavras confundem-se, os conceitos banalizam-se. Não és mentiroso, mas antes vês a coisa por outra perspectiva, aquela que te fortalece mais, a que te levará a algum lugar. Amas-te a ti mesmo como se fosses um ser único e divino. Ensinas os teus filhos a serem dinâmicos da mesma forma que tu és. Não tens culpa do teu mau feitio, o teu filho também não. A bondade escondeu-se neste mundo azul. Está reprimida, é censurada, é coisa de gente que não sabe o que quer, de gente que não se ama., de gente que não está na moda. Não podes ser fraco, nem feio, nem gordo, nem de cor estranha, não poder ser velho, nem ter pouca instrução, tens que te vestir segundo as instruções, tens de pensar pouco e agir mais. És uma ovelha azul.

 

 

 

Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.A 
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?

 

 

 

 

Charles Bukowski 

 

 

 

 

 

Alice Alfazema