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Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia - o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou a vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu, sem ter dinheiro."
Poema de Bocage, nascido em Setúbal a 15 de Setembro de 1765
Bocage nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765, reza a história que tinha um temperamento irreverente com um sentido de humor difícil de discernir, sendo, também um defensor da igualdade, fraternidade e liberdade. Este texto que se segue está perfeitamente enquadrado na situação que se vive actualmente, querendo isso dizer que, apesar de já terem passados tantos anos, as desigualdades sociais persistem, e persistem pelas mesmas fúteis razões.
Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia.
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).
De um deles todo o aconchego
Era dormir no borralho,
O outro em leito de Senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou e lambeu-o aquele
Pelo ver da sua casta:
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.
Aguda unhada vibrando,
Lhe diz:"Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo opulento e nobre!
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão,
Tu lazeiras e dormimos
Eu em cama tu no chão.
Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci,
Mas para ver não minto
Basta-me olhar para ti."
"Ui!" (Responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
"És mais do que eu! Que distinção
Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar."
"Nada,(acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar."
"Então" (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
"Se tu não és mais valente,
Em que és superior a mim?"
"Tu não mias?" - "Mio." "E sentes
Gosto de pilhar algum rato?"
"Sim." - " E o comes?" - " Oh se o como!"
"Logo não passas de um gato.
Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu,
O que tens é mais ventura."
in, Bocage, Fábulas de Bocage
Alice Alfazema