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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Blogues

Uma página com gente dentro

08
Set21

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Ilustração  Daria Rosso

 

 

Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita profética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.

 

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, para ler aqui.

Chá de violetas (5)

Sara

16
Mai20

chá de violetas.jpg

 

Hoje quem vem cá beber um chá de violetas é a Sara, que não trouxe nem o sarin nem a lixívia, no entanto, veio carregadíssima com a sua boa disposição, frenética e contagiante, gargalhámos e vimos cinema, ainda ganhei uns presentes, mas mais não digo, vejam lá se tenho razão:

 

 

Olá, Alicinha, desculpa chegar tão tarde. Nem imaginas o que me aconteceu! Espera, deixa-me respirar um bocadinho, que já te conto…

Sabes lá! Acordei às 7 da manhã, muito feliz por ser o dia de vos visitar, a ti e ao Ginjas, e fui fazer um bolo maravilhoso, receita de família que pensei partilhar contigo depois de provares. A excitação era tanta que não parei de abrir o forno, a ver se o bolo estaria cozido. Resultado: o bolo não cresceu! Como ainda era cedo fiz outro. Mas desta vez não abri o forno, regulei o temporizador e só tirei o bolo quando tocou. Só que o diacho do temporizador enganou-se! Ou então o forno não aqueceu bem, talvez tenha entrado ar pelos buraquinhos dos pregos que coloquei a segurar a porta que caiu de tanto abre-e-fecha. Olha, não sei que máquina falhou, mas a verdade é que o bolo se desfez todo ao desenformar. Nem queiras saber, fiquei tão triste, Alicinha! E a pilha de nervos? “E agora, que levo eu à Alicinha?”, as horas a passar, os ovos a acabar… enfim, recorri à minha outra receita que faz sempre sucesso nas festas aonde compareço, de tal maneira que o guardam sempre para o fim. “É a jóia da coroa”, dizem-me, e não é para me gabar, mas deve ser mesmo verdade pois todos o dizem. Afinal, quem é que não gosta de um bonito bolo de chocolate, não é? Bom, Alicinha, revirei a despensa em busca das bolachas Maria e do tulicreme que tenho sempre de reserva para estas situações (são raras, mas vez ou outra…) e lá fiz o bolo, receita especial de flor com confettis, que fica ainda mais bonito - e tu mereces!

Bolo feito, arranjei-me com a minha melhor roupa e fiz-me ao caminho. A pé, pois faz bem caminhar e, sendo vizinhas, não demoraria muito a chegar. De qualquer maneira, com a azáfama nem tinha almoçado e começava a ter fome - que diabo, nunca é cedo entre amigas e tanto se lancha às 17 como às 15, verdade?

Mas oh, Alicinha! Hoje estás mesmo com azar! Então não é que fui atacada por um meliante e, ao tentar defender-me, o teu bolo me caiu ao chão?! Juro-te, Alicinha, se apanho aquele rato dou-lhe cá uma vassourada! Não pude dar cabo dele porque tinha as mãos ocupadas, se não teria sido na hora! Tu se o vires, Alicinha, tu tranca-te em casa e avisa-me, que o bicho é perigoso mas eu, estando com a fúria, sou ainda mais! Tu nunca me viste assim, Alicinha, mas fico com um ar tão ameaçador que o Ginjas, se me visse, desatava a ganir! Olha, para veres, o malandro do bicho começou a provar o teu rico bolinho e fugiu, tal o susto!

Depois disto ainda tentei encontrar qualquer coisita para te trazer, mas estava tudo fechado aqui na rua excepto a mercearia do Sr. Joaquim e ele também teve por lá uns problemas... Mas acredita que procurei qualquer coisinha, Alicinha, juro-te que procurei! E encontrei – mas não o que procurava. Olha, vê o vídeo e verás que revirei tudo - além de ficares a perceber porque é que trouxe um convidado.

 

 

Pois, como dizia… espera! Deixa-me ver esta mensagem, se não te importas… Ai, caramba, Alicinha, hoje estás mesmo com azar! Então não é que o artista que contratei afinal não pode vir?! Ah, não, espera, não vem, mas diz que mandou um substituto - vá lá, menos mal! Oh, Alicinha, não dizia que não ao chazinho enquanto apreciamos o espectáculo… estou ansiosa para o provar numa das tuas bonitas chávenas!

 

 

 

 

O teu chá estava mesmo muito bom, Alicinha! Foi uma pena o teu bolo… e as chávenas, mas na volta foi um favor que te fiz, não? Assim já tens uma desculpa para comprar um serviço novo… que eu ando mortinha por um com chávenas maiores, mas não tenho onde o arrumar. Olha, como gostas de coisas antigas, dou-te o meu, que era da minha tia-avó. Coisa antiga e de qualidade, comprado em 1977 numa das melhores casas à entrada de Badajoz! Só foi usado 3 vezes e sempre lavado à mão, está como novo - eu seja ceguinha se o vidro tiver um risquinho, podes acreditar no que te digo! Se quiseres, tu não te acanhes, Alicinha, tu não te acanhes e aceita, que é dado de coração!

E agora vou-me, Alicinha, que já vão sendo horas e tenho de ir limpar a cozinha… obrigada por este bocadinho, gostei muito de te visitar!

 

 

Nota: Nenhuma das situações referidas no texto tem qualquer relação, ainda que remota, com a realidade. No entanto, duas das frases têm aplicação muito real:

“obrigada por este bocadinho, gostei muito de te visitar!” porque me diverti a criar este postal, Alice, e espero que proporcione um agradável momento a quem passar. Para te compensar pelo bolo que não trouxe, deixo-te estas plantas virtuais que, por serem de Outono, se adaptam a esta Primavera virtual e “tu não te acanhes, Alicinha, tu não te acanhes e aceita, que é dado de coração!”

 

centro de mesa.jpg

 

Obrigada Sara, gostei muito da tua visita e dessa tua boa energia que trouxestes até aqui. 

 

A vizinha:

Sarin - nem lixívia nem limonada

 

 

 

Jardim

Desafio de A a Z

06
Mai20

Sentei-me debaixo do jacarandá, e pressionei as minhas costas contra o tronco até sentir os seus nódulos, olhei para cima e vi uma copa violeta de flores, num aglomerado alegre que contrastava com o azul do céu e as pequenas nuvens brancas que eram empurradas pelo vento. Aspirei o perfume, para que pusesse em mim aquela vibração. A casa estava pintada de branco, e as janelas abertas, o João e a Joana discutiam como de costume, nos canteiros estavam cravos vermelhos que dançavam com a brisa que vinha do mar, plantei-os para me lembrar da Liberdade, no pátio uma criança pequenina ria ao correr atrás da bola, fazendo um esforço para a alcançar primeiro que o adulto com quem estava a jogar. Alguém colocou música no ar, jazz, as notas suaves passeavam em cada recanto. Senti-me tranquila, o fresco da manhã convidava à leitura, talvez à tarde fosse à praia, peguei então no computador e reli as palavras que tinha escrito naquela terrível Primavera de dois mil e vinte. Tinha-me calhado a letra J.

 

 

Fui desafiada pela, a quem agradeço, e passo o desafio à AnaProponho que escrevas um texto utilizando a letra "K" e respeitando a alinea b), a palavra é kebab. 

 

AS REGRAS


1. a história só poderá ter, no máximo, até 200 palavras.


2. o blog que desafia terá de escolher uma das três seguintes restrições:
             

a. qual o lipograma (texto que se constrói prescindindo de alguma letra do abecedário) para tornar a escrita mais criativa. exemplos? não pode ser utilizada a letra "L". isto pode ser aplicado no texto todo, numa só frase, ou num parágrafo, consoante o grau de dificuldade que procurarmos. da mesma forma, omitir vogais é mais difícil do que omitir consoantes. 


         b. escolher uma palavra específica que se queira ver incluída no texto, qualquer que seja o tema escolhido posteriomente pelo blog desafiado. o objetivo é que, apesar disto, a história não perca o nexo. também aqui, quanto mais incomum for a utilização da palavra, mais difícil será. exemplo? "esferovite". 


           c. o texto não poderá incluir a palavra relativa ao tema. exemplo? se o blog que ficar responsável pela letra "c" quiser escolher o tema corona, mas se o blog que o desafiou tiver escolhido esta terceira restrição, então ao longo do texto não pode ser usada essa mesma palavra. 


Quem escrever sobre um tema de letra "A" fica responsável por dar seguimento e desafiar outro blog diferente, deixando claro qual a restrição que quer. o blog que for então desafiado a escrever sobre um tema que comece pela letra seguinte (neste caso, "B") terá liberdade para escolher a palavra que servirá de base ao tema, tendo em atenção a restrição que foi sugerida pelo blog anterior. daqui seguir-se-á para as seguintes letras até terminarmos o desafio na letra "Z".)

 

 

Chá de violetas (4)

Robinson Kanes

03
Mai20

chá de violetas.jpg

 

O dia hoje está tão quente que vamos beber o chá com violetas com umas pedrinhas de gelo. Este calor faz-me lembrar mergulhos e caminhadas à beira-mar, o cheiro a maresia no ar, gaivotas rasando as ondas e a fazerem inveja aos que as olham e queriam também eles ganhar asas. Assim, mesmo sem asas, hoje tenho aqui na minha sala, paisagens que muito amo, e das quais tenho imensas saudades, só me faltam os cheiros, porque em palavras o Robinson, descreveu-as com o requinte de um viajante experiente e observador, apelando deste modo à nossa vontade de ir e conhecer mais e mais, esses recantos que para mim são mágicos, singulares e encantadores, e que todos os que puderam ver, talvez partilhem também as mesmas emoções, quando se elevam neste pedaço de barro vermelho que é depois engalanado pela nossa Mãe Natureza. 

 

 

 

 

My Dear Arrábida
 
 
 
 
 
Quando só há gaivotas e solidão, é que a Arrábida se revela, se entrega inteirinha.
Sebastião da Gama, in "Diário"
 

 

 

 

Existe um pequeno cantinho, naquele que é talvez o mais diversificado distrito do país. Um cantinho que nos transporta para um mundo novo e completamente diferente. Passadas as colinas da Serra do Louro ou da Serra do Risco, ergue-se uma paisagem abençoada pelos deuses, a Serra da Arrábida.

 

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Sebastião da Gama terá sido o grande poeta que foi, muito por culpa dos ares que se respiram daquelas terras. A pé ou de bicicleta, ou simplesmente estático a apanhar sol, a sentir a água do Atlântico, que ali tem uma cor especial, ou até, bem lá em cima, no Miradouro do Norte, a receber o ar marítimo - mil e uma histórias se cruzam e onde a Terra, não só a Humanidade, conta a sua longa história.

 

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A cor da terra nas botas ou nas rodas da bicicleta - vens da Arrábida, com os pneus assim - mostram que chegámos de uma outra dimensão. Que percorremos vinhedos, que andámos por densos matagais, pelo alcatrão quente de Verão e por alguns dos mais belos trilhos do mundo. Em cada curva, em cada elevação encontramos os frutos da terra, que não se resumem às tão apreciadas uvas, mas também a um sem número de cultivos, um sem número de aves e bichos rasteiros, um sem número de casas apalaçadas, belíssimas paisagens e até alguns dos mais belos cães de raça "Serra da Estrela", quem diria...

 

Entre Palmela e Setúbal, entre Azeitão e Sesimbra, parar para um queijo, para uma torta e um chá, para um inesquecível roxo - um dia é pouco para se dizer que se conhece aquele mundo. Dúvidas? Peguem em tudo isso, invadam a Bataria do Outão e sentem-se em cima do mar... Coloquem a toalha junto de uma peça de artilharia de costa e deixem que a natureza e as iguarias da região façam o resto. Desçam e subam, parem para mergulhar...

 

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A Arrábida é mais que o passeio pelo seu alcatrão, é ir serra e mato adentro, é chegar sujo, cansado e acima de tudo, então aí sim, terminar com um peixe bem grelhado no Portinho ou mesmo em Setúbal, com uma mesa e tudo aquilo a que temos direito. 

 

Deixemos que "Serra-Mãe", do grande poeta com apelido de navegador, nos embale nestas aventuras... Para isso, sentemo-nos no caminho dos moinhos, já na Serra do Louro, e fechemos os olhos... Vamos escutar as palavras, vamos ouvir os rebanhos e os uivos do vento do Atlântico, que atravessam o Sado e entre os encontros com a serra chegam ao Tejo, bem visível lá ao longe.

 

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Deixemo-nos embalar e quando as luzes do Castelo adornarem a paisagem nocturna de Palmela, deixemos a serra para os seus habitantes nocturnos e encontremos uma renovada cidade de Setúbal e se, não queremos deixar as alturas, nada como um copo no Forte de São Filipe e aí teremos a cidade aos nossos pés e Tróia a chamar por nós, quiçá para o dia seguinte.

 

 

Obrigada Robinson, gostei muito deste passeio maravilhoso, num espaço que me é tão querido. 

 

 

Vizinho:

Não É Que Não Houvesse...