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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Conversas da escola - De frente e de costas

16
Jun18

Tenho uma colega que trabalha a tempo parcial na escola,  o seu horário de trabalho na escola vai do meio da manhã  até por volta das duas, quando chega já vem de uma outra escola, onde faz a recepção dos alunos na versão ATL, fica com eles até que as aulas comecem, ganha mais nesse curto espaço de tempo, do que naquele que está como assistente operacional na escola, pergunto-lhe:

 

- Então ganhas mais a fazer esse trabalho do que aqui?

- Sim, mas é um trabalho diferente!

- Diferente? É de frente e de costas!

 

 

Vou explicar o tipo de trabalho que ela faz na escola onde trabalho: varre os pátios, onde abundam plásticos e restos de jardim, despeja os baldes do lixo que ainda são alguns, carrega esse lixo todo, mais o das casas de banho e leva-o até ao contentor do lixo municipal, que se encontra fora da escola e no outro lado da estrada, entretanto se houver alguns problemas no recreio, tem que ir até lá e ver o que se passa comunicar a quem de direito ou então resolver o conflito, terá também de fazer o mapa de faltas dos docentes que dão aulas naquele bloco onde se encontra, e regista-los no livro de ponto, atender alguma chamada, dar recados, limpar vomitados, auxiliar miúdos doentes, fazer primeiros socorros, vigiar e manter o local limpo.

 

Portanto tudo isto é diferente. É de frente e de costas! 

 

 

 

Alice Alfazema

Conversas da escola - Como se lava uma sanita?

06
Set17

Há onze anos, quando vim trabalhar para a escola, tinha uma ideia idílica sobre a escola, pensava então que poderia fazer a diferença, que estava ali porque fazia parte de uma equipa. Assim um belo dia, caiu-me pela primeira vez a ficha, estava eu sentada na secretária, num bloco de doze salas, quando uma jovem sai de uma sala e me diz: a professora mandou-me perguntar-lhe por que é que está aqui a trabalhar, estou aqui a trabalhar porque fiquei desempregada, ah, ela disse-me que se eu não quero estudar, depois tenho que arranjar um emprego assim. E eu fiquei a olhar para a miúda com um ar aparvalhado até ela voltar novamente para a aula. Depois mais nada.

 

Quando pensamos em escola, pensamos em educação, pois é, por lá há muita, há com má e sem má. Temos neste espaço diferentes personalidades, há muita gente boa e gente menos boa, como em todo o lado, dirão alguns e é verdade. Aos bons agradeço o que me dão quando preciso de motivação, quer seja em palavras ou em sorrisos e até em mimos, aos outros agradeço na mesma porque me fazem reflectir em como não quero ser assim.

 

Não me lembro da primeira vez que tive de lavar as sanitas, algumas até desentupi-las, varrer, lavar, esfregar, carregar baldes de lixo...e voltar ao mesmo, quem tem crianças em casa sabe como é, agora multipliquem isso por mais de oito centenas. Enquanto lavava as sanitas era ainda capaz de ter de retirar as luvas, atender o telefone, ir dar um recado, ou ver outra situação qualquer e depois voltar a calçar as luvas e lavar o resto das sanitas, entretanto as pessoas iam entrando e saindo da casa de banho como se nada fosse.

 

Num outro momento da minha estadia na escola pedi opinião a uma professora sobre o facto de eu querer entrar na faculdade, ao qual obtive a seguinte resposta: inscreva-se, inscreva-se, que eles agora estão a aceitar toda a gente. E não havia mais nada a dizer. Calei-me. Agora que já terminei a licenciatura estou no bar a abrir carcaças e a por manteiga no pão, não tenho nada a acrescentar pois tenho uma faca com uma serrilha muito boa e a manteiga é dos Açores.

 

Num outro dia ouvi alguém dizer que estava a encorajar os miúdos a estudarem para depois não irem varrer ruas. Portanto esse tipo de emprego é um castigo para quem não estuda, o valor do trabalho é uma coisa mítica, no sentido de que valorizamos o prestigio e não a acção em si. Por isso penso que o livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, deveria  ser de leitura obrigatória na escola. De certo que mudaria muitas mentes.

 

Mais uma vez... quando estávamos a falar sobre o valor do ordenado mínimo, de como era difícil viver com tal quantia, alguém me diz: e acha que para nós não é difícil? respondi que no mínimo alguém tem de pagar trezentos euros de casa e o que lhe sobra é muito pouco para as despesas básicas de sobrevivência... 

 

Sei por verificação ao longo dos anos em que estou neste mundo que as pessoas com menos posses são as mais solidárias, são capazes de repartir e queixam-se menos das agruras da vida. Se alguém se sentir lesado por aquilo que escrevi, pensasse duas, três vezes antes de me dizer, porque em mim essas palavras criaram mossa. Olhar para além de, é um exercício que se aprende com uma certa facilidade.

 

Existe uma desvalorização profissional que se acentua de ano para ano, olha-se assim para esta profissão como algo dispensável. Um cuidador nunca é um ser dispensável. Esta visão redutora tem de ser alterada. Se eu poderia arranjar um outro emprego? Poderia, mas não era a mesma coisa. Não teria o carinho dos miúdos, os risos fáceis nem aquela azafama de vida que acredita no futuro, a isso chama-se: Esperança.

 

 

 

Alice Alfazema

 

 

 

 

 

Março dia 18 - Mulheres que trabalham nas escolas públicas

18
Mar17

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Há onze anos que trabalho numa escola pública, como assistente operacional, que antes era chamada de auxiliar de acção educativa. Na entrevista de candidatura perguntaram-me se eu tinha problemas em fazer limpezas, naquele tempo não percebi a insistência na pergunta, alguns meses depois, e durante os anos seguintes senti no corpo a razão daquela pergunta. Cheguei a ter mais de oito salas de aula por limpar, mais a soma da zona de recreio onde abundam árvores, canteiros e lixo espalhado pelo chão.

 

Ainda hoje não sei realmente a verdadeira função de uma assistente operacional na escola, tenho muita dificuldade em perceber o que sou no meu trabalho, às vezes sou varredora, outras empregada de bar, noutras administrativa, sou ainda vigilante e mediadora de conflitos. Também já fui costureira e pintora nos tempos mortos. No entanto, por vezes estou coberta por uma capa invisível como o Harry Potter, às vezes sou bruxa má, noutras sou fada madrinha.

 

Tenho também dificuldade em perceber o porquê de as acções de formação para assistentes operacionais serem praticamente inexistentes ou então resumem-se a primeiros-socorros e à higiene e segurança no trabalho, há ainda outras dificuldades quanto ao salário e à denominação do nome da carreira, por exemplo se eu trabalhasse num politécnico estaria na carreira de assistente técnico,  mas isso são contas de outro rosário...

 

Desta forma decidi pedir às minhas colegas que me definissem o que significa para elas ser assistente operacional numa escola pública, aqui estão as suas palavras, deixo também fotografias que tirei na escola ao longo dos anos e que demonstram como cuidamos da nossa escola que é para nós como uma segunda casa.

 

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É saber aconselhar e dar atenção quando necessário.

 

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É ser pau para toda a obra. É ter de saber fazer de tudo e mais alguma coisa. É ser invisível na maioria dos casos. É dependendo da situação não fazer falta nenhuma.

 

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É estar desmotivada, mas ter ternura para dar.

 

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Ser assistente operacional é participar activamente na comunidade escolar, é participar nas actividades extra curriculares, mas infelizmente não é exactamente essa a realidade.

 

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É como ser dona de casa! Fazer de tudo um pouco e às vezes o seu valor não ser reconhecido. Somos amas, educadoras, enfermeiras, administrativas, empregada de limpeza, vigilantes, confidentes, amigas, jardineiras, telefonistas, cozinheiras.

 

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Nós somos um bocadinho de tudo, ao lidar-mos com meninos com necessidades educativas especiais. Trabalhamos com meninos que andam em cadeira de rodas, que se movem através de andarilhos, que não falam, somos pois enfermeiras, mudamos-lhes as fraldas, damos-lhes de comer, vemos se têm febre, temos de saber actuar caso seja necessário, somos portanto um bocadinho de tudo, enfermeiras, psicólogas, educadoras, mães...

 

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Ser assistente operacional numa escola deveria ser um complemento ao professor na sua ausência; durante os tempos livres zelar pelo bom comportamento dos alunos e auxilia-los quando necessário. Eu assistente operacional, sou empregada de limpeza e criada a tempo inteiro durante as 7h ou mais se necessário quer para professores, pais ou alunos. 

 

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É ser colaboradora dos professores. Para ser mais precisa, envolve tarefas simples como ir buscar um livro de ponto, dar um recado, ou levar um aluno à direção quando está a ser incorreto na aula. É uma profissão que envolve algumas tarefas diversificadas, mas em todos os postos de trabalho temos um contato próximo com alunos que nos permite ser: amigos, confidentes, enfermeiros, psicólogos e alertar os professores para alguns possíveis perigos...quer de maus tratos em casa ou até de bullying. Somos poucos assistentes operacionais, mas sem nós as escolas não podem (não devem) funcionar. Cabe-nos também a tarefa de manter os espaços limpos e em bom estado de conservação.

 

 

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A maioria das  pessoas não tem a noção daquilo que é ser "assistente operacional" numa escola, alguns pensam que levamos o tempo sem fazer nada, mas façam uma simples reflexão: se para educarmos um filho exige muita perseverança imaginem o que é exigido para mais de 700? Algumas pessoas pensam que a escola é simplesmente o "contexto de sala de aula", então no resto do tempo os miúdos desaparecem como que por milagre? E as problemáticas sobre a violência em meio escolar acontecem apenas em "contexto de sala de aula? Tenho-me deparado ao longo dos anos-lectivos com a recepção à comunidade educativa, para quem é a recepção? Adivinhem? Homenagens? A quem? Esta malta não trabalha em contexto de sala de aula. Até o uniforme é uma coisa do além, desde batas às florzinhas, outras aos quadradinhos...será que custava muito definir a coisa a nível institucional? Quanto ao salário, basta o ordenado mínimo nacional, isto porque as tarefas são todas muito básicas. O próprio Estado promove este pensamento retrogrado ao nivelar por baixo estas funções, quanto ao resto da sociedade...experimentem exercer esta função durante seis meses, depois contem-me.

 

Obrigada colegas!  

 

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Um abraço da Alicinha Contina, para todas as continas do mundo e arredores. 

 

 

 

 

Alice Alfazema