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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Marear

20
Abr22

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De manhã são de terra
as palavras que trago sobre a língua.
Sabem a trigo
ao sangue dos morangos
ao caule das papoilas.
Dizem coisas morenas e germinam.
São de terra. As palavras.
 

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À tarde são de vento
e flutuam na seda das bandeiras
e deslizam na solidão das águias
e adejam no limiar dos plátanos.
Desabridas desatam véus e medos
e porque são de vento
constroem catedrais e tecem barcos.
Fazem bater janelas do lado do poente
por onde espreita
a ponta de marfim da lua nova.
Depois são música nos teus cabelos de harpa
E desfloram lilases.
 

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Mas à noite são água.
As palavras são água.
 

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Procuram os teus olhos enfeitados de estrelas
e salpicam safiras e matizes
no teu corpo de fonte.
Dizem regato e cantam.
 

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São cântaros no poial da entrada
onde bebem as tuas mãos vagabundas.
 

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Beijo a beijo
pus pérolas de chuva nos teus ombros.
E as palavras escorrem sendo água
na cachoeira azul-escura da noite.
Embalam sendo lago
Gestos caídos da margem
e vogam na fluidez do sono.
 

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As palavras da noite, gota a gota
Orvalhando o silêncio
(redondo, o húmido coração do silêncio).
E devagar, na espuma do desejo
Acordam naus submersas. As palavras.
 

 

E correm sendo rio
na promessa de serem amanhã
de novo terra. E trigo.
 
Mas agora são mar.
 
Vem marear comigo.
 
 
Poema de Rosa Lobato de Faria

Uma arte do ser

Arte Poética II

25
Nov20

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Ilustração Bee Johnson

 

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

As palavras

16
Mai11

Neste mundo das palavras escritas, onde, o silêncio e o barulho não existem, nem coexistem, pode-se no entanto, fazer tantos silêncios e barulhos, quanto, aqueles que quisermos.

 

As palavras pertencem a um determinado meio, e têm determinada personalidade; os silêncios e as intencionalidades predominam nas mais variadas ocasiões, levando a que, aquele que as lê, as recolha e as leve consigo, ou as deite fora, conforme lhe aprouver.

 

 

Alice Alfazema