Hoje trago-vos mais uma crónica do Janeka, esta surge no Nordeste brasileiro:
A última viagem
A casa mortuária não tinha a iluminação soturna que convém a um velório. Era de um néon excessivo e frio das modernas velas elétricas. Das velas antigas, de cera, com a mesma cor do defunto, estavam acesas apenas meia dúzia, mas pouco brilhavam. Limitavam-se a decorar o entorno do caixão com uma luzinha tremelicante e deslavada.
Um corcunda, suposto funcionário da agência de enterros, estava sentado numa saleta contigua. O seu oficio era vigilar. Por isso, esforçava-se por enganar o sono, controlando entediado a chegada esparsa, mas regular dos visitantes. Gente que acudia à despedida da pessoa aqui exposta, no ato penoso e algo indigno de um corpo que passou a ser totalmente dispensável.
Com o avançar das horas a cabeça do marreco pendia lentamente, num cochilo furtivo. Uma mola invisível, levantava-lhe no entanto os queixos, assim que batia no peito. Os que chegavam, cumprimentavam-se uns aos outros. Formalmente os mais distantes. Abraçavam-se emotivos os mais chegados. Só depois se acercavam do defunto.
Um grupinho de velhas na primeira fila movia os lábios, em Pais Nossos e Avé Marias mecânicos, contados pelos dedos nas missangas do rosário. Essas, bem despertas, miravam quem chegava, quem era quem, e qual a sua relação familiar ou amistosa com o defunto. A bitola de avaliação era: Se mantinham alguma distancia, e só o olhavam curiosa ou indiferentemente, eram amigos da família. Se chegavam perto, se tocavam no corpo, ou se lhe recomendavam a alma com uma breve reza e sinal da cruz, eram amigos pessoais. Se derramavam algumas lágrimas, sentidas ou forçadas, eram família.
Entre os chegados, formavam-se grupinhos, que logo demandavam por novidades dos distantes e contavam as últimas aos presentes. Falava-se da seca, da novela das oito, da política e do futebol, e a conversa corria solta e descuidada, deslizando ocasionalmente para a pilhéria e risota, quando os amigos recordavam as quantidades de cachaça, e as farras que tinham dividido ou vivido com o amigo, ora finado. Conversa de todo imprópria ao momento. Os olhos reprovadores das rezadeiras acendiam-se, o movimento dos lábios diminuía e os dedos vagavam na contagem das missangas. Os autores do involuntário deboche caíam em si, e, culpados, olhavam de soslaio para o corpo, que, na sua inerte indiferença, parecia confortável na cama de pétalas de margarida onde o tinham deitado, parecendo se borrifar definitivamente, tanto para as graçolas dos amigos, quanto para as velhas. O grupinho recomeçava então uma faladeira mais comedida, e com o avançar da noite, o grupo das velhas ficou reduzido a duas, e o corcunda acabou por dormir já sem restrições nem molas que lhe endireitassem os queixos.
O enterro foi marcado para as sete da manhã. Era cedo? Com certeza ! Mas o cangalheiro precaveu-se com a falta de pontualidade do povo, porque chegar a tempo e horas, parece ser mal encarada por aqui, e tido como um sinal de dependência ou fraqueza. Chegar depois, ou muito depois, é pelo contrário, um sinal de importância. Com um pouco de sorte sairia o enterro por volta das nove. Só o carro de transporte de defuntos estava de prontidão na porta da capela, na hora marcada. Era um pequeno camião transformado em carro funerário. A caixa, originalmente concebida para o transporte de carga bruta, tinha sido coberta com uma espécie de toldo e pintada de azul celeste com lúdicas florinhas amarelas, para solenizar e dignificar um pouco a carga da nova função. O caixão foi colocado entre duas fileiras de altifalantes que de imediato começaram a debitar cantigas religiosas, tão alto quanto permitia a instalação sonora. “Tudo muito lindo”, segundo alguns presentes. Nem na capital tinham um semelhante transporte funerário, pintado de azul com florinhas amarelas e um tal efeito sonoro.
A previsão do cangalheiro estava certa. Apenas alguns acompanhantes estavam presentes, mas no bater das nove, foi inflexível na partida para o cemitério. A comitiva presente começou a mover-se atrás do carro de carga enfeitado. Na cabine iam o condutor, e o Quasimodo, agora bem acordado e notavelmente ativo. Grande parte dos presentes, fazia telefonemas urgindo os crónicos desmazelados a correr para se juntarem à procissão, que rapidamente engrossou no trajeto até à capela onde seria rezada uma missa. Nesse exato momento começou a chover neste lugar de pouca chuva, e de secas severas. E choveu durante todo o percurso que foi curto. Somente três ou quatro quarteirões mais longe, que todos os encharcados desejariam terem sido mais perto.
O morto foi retirado de entre as duas colunas de som (se não estivesse morto tinha ficado mouco), e novamente deitado na porta de entrada do templo, sobre duas pesadas colunas de estanho. Quem viesse assistir a missa, teria de passar por ele, como uma espécie de guardião do lugar. Vieram velhos e novos, abastados e pelintras, de perto e de longe, gente feia e gente bonita. Entre eles, uma dama guardando traços de uma beleza de antanho, entretanto desvanecida pelos oitenta anos que aparentava ter. Usava óculos escuros grandes, como uma estrela de cinema dos anos sessenta. Procurando ser discreta (mas com aqueles óculos e aquela pose?), manteve-se a uma certa distância, recolhida em prece, ou, quem sabe, em recordações intimas do defunto, porque também ele, aparentava ter sido um homem interessante e presumivelmente charmoso. E, de novo, o povo teve que esperar conversando em surdina para ajudar a passar o tempo. Esperavam agora pela chegada do padre, que certamente também não via a pontualidade como uma virtude, e enquanto ele não chegava, o sacristão e o Quasimodo afinavam o aparelho de som da capela.
Na verdade, não seria necessário, uma vez que o espaço, por ser pequeno, não precisava de som amplificado. Mas eles tinham claramente uma opinião diferente, porque segundo os costumes desta região, tudo o que é propagado, tem que ser em alto e bom som. Por isso, fizeram questão de pelejar com os microfones número um, que o sacristão rapidamente ajeitou. O marreco no entanto, não se cansava de repetir no microfone numero dois, “som, teste, um dois”, “alô alô”, “som teste, um dois”, “alô alô”, e as caixas de som, respondiam com um entremeado de roncos electrónicos e assobios de arrepiar. Quando o padre chegou, tirou-lhe o microfone número dois das mãos, apesar de não ter ainda conseguido acertar a tonalidade e as vibrações eléctricas certas, e abençoou a assistência com um sinal da cruz, e um “sejam benvin...ppppfffffiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuue um guincho pavoroso da caixa de som. “Louvado seja nosso... pppppppffffffiiiiiiiuuuuuuuuuu. O bom senso fê-lo desistir, pousou o microfone na mesa do altar, e começou os preceitos da missa, em voz natural e perfeitamente audível.
O sacristão, no entanto, não abdicou do seu microfone numero um, que tinha feito funcionar, e de plantão na porta da sacristia, Ignorava a sua tarefa coadjuvante, suplantando (na verdade abafando), as rezas do padre, em altos gritos de AMÉM, e GLÓRIA AOS CÉUS. Terminada a missa, ainda esperaram os presentes que a chuva parasse neste lugar de pouca chuva, e de secas dramáticas. Mas não parou. Logo naquele dia... Resignados, seis a oito pessoas, lá pegaram no cacife que levaram para o cemitério adjacente resignando-se a ficar de novo encharcados. Os que ficaram na capela tiveram que a vagar, porque a vida continua e outros mortos esperavam. A capela tinha de ser arrumada, mas eu ainda fiquei por ali, pensando na pergunta inocente do tio António, que dias atrás, querendo saber de onde eu era, me perguntou. “Qual é o teu sertão?” Na verdade eu não sei... o meu sertão, tanto pode ser no Portugal profundo, como no interior do Nordeste Brasileiro. E, afinal de contas feitas, qual é a diferença?
Texto João Marcelino
Alice Alfazema