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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Jade

26
Jan25

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Lá fora o temporal chega, dizem que é a Hermínia.

Abanam os ramos ao som do vento da Hermínia, num abalo de fado triste e molhado, deixando os ossos húmidos, num arrepio de frio silencioso, enquanto, os falcões se aninham de novo na varanda da frente, enquanto, os brotos das árvores se esforçam por rasgar os ramos que se jogam ao alto, tentando num desespero contínuo alcançar o céu.

Nas brumas da minha memória, recordo que hoje faz trinta anos que a minha avó morreu, e eu grávida escolhi a roupa que havia de levar, um fato cor de rosa, de certa forma é a primeira vez que visualizo mentalmente a cor do fato saia-casaco, ainda lhe sinto a textura, e sinto a calma com o que escolhi, era noite, depois da hora do jantar, a mesma hora que vinha na folha de papel que nos dão com a hora da morte, estranhamente não me senti assustada, nem chorei, somente retirei a roupa do roupeiro e coloquei-a em cima da cama, dos sapatos não me lembro, nem  tão pouco de quem foi buscar a roupa, ou se a entreguei a alguém, mas daquele momento, como "quem veste um sentimento" é-me difícil esquecer, não que o queira, foi a primeira vez que tive de assumir o comando sobre um assunto nesta matéria, estando eu com uma nova vida dentro de mim, era como se estivesse entre dois mundos, a finitude do adeus e a brevidade de um até já.

Não me senti melhor, nem pior, senti que tinha de ser, no entanto não me pareceu existir abandono na morte, mas sim houve espaços vazios que não soube imediatamente como os preencher, apenas o tempo foi meu camarada nesse vazio triturador de emoções, invadiu-me como uma imensa raiz e fez crescer uma outra vida, outras conversas, outras vozes, no entanto a sensação daquela pele, que me fazia lembrar papel de seda, permanece em mim, talvez pareça estranho a esta distância, mas o que é o tempo senão a contagem dos dias, para a frente e para trás.

 

"Doutras vidas é a amarra que nos prende

Como o xaile que entrelaço nos meus dedos

A força deste amor só Deus entende

Que afasta do meu ser a dor e os medos"

Gonçalo Salgueiro

Vazios femininos e masculinos

24
Jul21

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Ilustração Lisa Aisato

 

Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito… A arte de amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas. Não é possível amar uma pessoa que não sabe ouvir. Os falantes que julgam que por sua fala bonita serão amados são uns tolos. Estão condenados à solidão. Quem só fala e não sabe ouvir é um chato… O ato de falar é um ato masculino. Fala é falus: algo que sai, se alonga e procura um orifício onde entrar, o ouvido… Já o ato de ouvir é feminino: o ouvido é um vazio que se permite ser penetrado. Não me entenda mal. Não disse que fala é coisa de homem e ouvir é coisa de mulher.

 

Todos nós somos masculinos e femininos ao mesmo tempo. Xerazade, quando contava as estórias das 1001 noites para o sultão, estava carinhosamente penetrando os vazios femininos do machão. E foi dessa escuta feminina do sultão que surgiu o amor. Não há amor que resista ao falatório.

 

 

Rubem Alves, no livro “Ostra feliz não faz pérola”. São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2008.

Amar

30
Jun17

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O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

 

 

Creio no Mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

 

 

 

 

 

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

 

 

 

 

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência é não pensar...

 

 

 

 

 
 

In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. 

 
 
 
 
 
Alice Alfazema