Sensação
Sinto-me assim uma coisa preciosa, fora do tempo, deslocada nas palavras, sabedora de outros saberes, por enquanto sem importância, sou como aquela mobília de outra época e de outras emoções, coisas vividas ao relento, nas margens de um rio, sob as estrelas, ao frio, ao calor sem protector solar, comendo iogurte com colheradas de açúcar, saboreando o granulado doce que se colava à língua, beijos mornos no areal escaldante, sapatos únicos, não no sentido de exclusivos, carcaça estaladiça com manteiga feita com natas do leite trazido pelo leiteiro, gritos na rua, risos sem remorso, alcunhas que faziam sentido, coisas sem sentido que tinham graça, a graça dos dias compridos desprovidos de ausências.
Sinto-me coisa de museu, de palavras em desuso, de colheitas de alfarrobas e de subidas a montes de amêndoas colhidas com casca mole e casca dura, a pinhões rachados na pedra debaixo de grandes pinheiros mansos, a estradas ladeadas de grandes árvores, a sombras frescas e amoras doces cheias de poeira dos caminhos feitos de areia e pedra miudinha.
Sinto-me antiga, quase com pele de seda, fazendo lembrar o papel de cetim, canetas de bico fino escrevendo em páginas de papel de linhas azuis, com cuidado para não as perfurar, cuidando da letra e do erro para não ter que as amarrotar e deitar fora.
Sinto-me fora de moda, porque parece-me que já usei tudo, que não há nada novo ou desconhecido, coisas de riscas e de quadrados, de folhos e de plissados, franzidos e curtos, compridos e berrantes.
Sinto-me cheia, de tudo e de nada, uma coisa estranha, mas conhecida, calma, mas desesperante, eu mesma, mas não eu de sempre, mas a de agora, e sabe-se lá mais o quê, assim como peça de museu, avistada, olhada com interesse, mas sem se saber bem o que é.