Na Taberna do Valente
Conheci o Janeka na Taberna, e estivemos e beber um Moscatel, vai daí ele contou-me esta estória. Esta é pois uma crónica dedicada às gentes da Fuzeta, e fica aqui para memória futura:
Na Taberna do Valente:
As tabernas do cais, sempre foram o poiso favorito de pássaros de plumagem variada. Eram camponeses que vinham vender produtos da própria lavra no mercado da terra. Pescadores nas horas de ócio, que para alguns eram eternas, artesãos e ajudantes de toda a espécie de ofícios, boémios, madraços e vadios. Em geral gente de menos cotação na escala social da aldeia. As pessoas consideradas finas, não entravam nas tabernas.
O Tó Rico, que de rico só tinha o nome, arriscava de vez em quando um tímido fadinho, de imediato reprovado pelo Valente, o taberneiro, que de valente também só tinha o nome. De barriga encostada no balcão reprimia sem contemplações estas propensões musicais com um “cala-te a boca pá, qu´isto aqui não é nenhum lugar de desbosche."
O outro respondia-lhe com um gesto vagamente obsceno e continuava cantando baixinho, no ouvido do camarada do lado, que já toldado, olhava macambúzio e obsessivamente, o cartaz pousado entre as garrafas de anis escarchado e aguardente de figo, anunciando que “as bebidas exposta, eram para consumo no estabelecimento”.
Neste fórum, nunca faltavam motivos de conversa. Todos os dias se debatiam temas de importância capital, nem que só o fossem para a ilustre congregação taberneira. Podiam ser só simples pontos de vista, alguns apregoados com autoridade e compostura, mas quase sempre entremeados de incríveis baboseiras. O ambiente era apesar de tudo, de calma convivência, excepto em ocasiões, bem verdade raras, mas algo previsíveis, dependendo de quando o Levante soprava da África Mediterrânea, levantando o mar, apoquentando os pescadores com a submissão envergonhada do tempo perdido em terra, mais a raiva do prejuízo das artes estraçalhadas nos fundos revoltos. Em dias desses, a frustração e o mau génio contido resultava em cachaporrada. Era só ter um bom pretexto.
O Tio Cartaxo era ajudante de padeiro, um dos clientes mais fiéis do Valente, e um dos primeiros a chegar logo de manhãzinha. Quando entrava na taberna, dava um grunhido e dizia para os presentes á laia de bom dia “em paz me deito, em paz m’alevanto, na graça de Deus e do Espirito Santo”, e em seguida começava a liturgia do costume, dispensando o pão, que esse ele já tinha com fartura, dedicava-se inteiramente ao vinho tinto, bebendo-o em goles pequenos e lentos. Os olhinhos brilhavam-lhe de regalo.Quando lhe aparecia o fundo do copo, depois de um arco elevatório de noventa graus, batia-o em cima do balcão, com um “Aaaaaahhh” de contentamento.O Valente, zeloso na servidão e no ganho, não precisava de confirmação para tratar de reabastecer o vasilhame, de muito vidro e pouco conteúdo.
Num desses dias de Levante, um anónimo de maus bofes, fez o sacrilégio de colocar ás escondidas um “bonico” de jumento no copo acabado de encher, enquanto o Cartaxo, distraído, dava piparotes com os dedos no boné fazendo voar nuvenzinhas de farinha na contra luz que entrava pela porta da rua.Quando levou o copo à boca, e a meio caminho se apercebeu da falta de respeito, não esteve com meias medidas, desatou à bofetada com o marreco Xana, que por estar mais próximo, era o mais suspeito, e, que por sua vez, por não ter sido ele, bateu noutro distinto freguês, que meio aparvalhado e para não ser o último e não se rissem dele, bateu no que estava mais à mão, entrando todos numa cadeia, de pancadaria generalizada.
O taberneiro, em desespero, saltitava entre os arruaceiros, não parando de ganir “Ai mundo sagrado. Ai mundo sagrado...” tentando em vão parar o desacato e o quebra quebra.
A algazarra, as pragas raivosas, os palavrões mais corrosivos da terra e fora dela, a madeira arrastada e estilhaçada, junto com um ou outro copo, foi como um remoinho de vento que tivesse passado por ali, mas que de repente parou como tinham começado, e tudo voltou à normalidade.
Na pós-calma da arruaça, contudo em perigo latente de se reacender, ainda se olhavam embezerrados e um pouco ressentidos, quando avançou um montanheiro de Sta. Catarina, que por ali costumava aparecer. De porte quadrado e grandes manápulas calejadas, tinha ficado fora da discórdia, em parte por estar sóbrio e em parte por meter medo a sua bitola física, pendendo para o avantajado. Em voz grossa, entendeu botar discurso e fê-lo, num ar autoconfiante, vagamente moralista. Em tom de sermão de padre, começou por dar ao vinho, as culpas da guerreia.
- Cá eu, nunca estive escarado (bêbado), porque bebo Água do Castelo ...e deu um arroto pretensamente convincente, que fez soar mais forte com um encolhimento da pança pantagruélica.
- A Água do Castelo, faz bem ao bucho, e à tripa e nunca almariou (outro termo popular para bebedeira) ninguéééééém....
Arrastava a última palavra do discurso, olhando em volta com um ar dominador, na certeza de quem sabe
- ...é boa pró fastio e quando a gente arrota, até se sente mais lévezinhooooooo....
E por aí fora… até que o Décio, intelectual e boémio, sempre vestido de casaco preto, gravata e chapéu de coco, mas sebento de fazer fugir os cães, manifestamente enjoado de tanta sandice, gritou do fundo do estabelecimento
- Esteja calado... seu subversivo de gosto inócuo...!!!
O Golias, apanhado a meio discurso, parou, franziu a testa tentando entender... depois de coçar o cachaço e alguma hesitação entre continuar o sermão e deixar o seu crédito na mão do Décio, explodiu
- Submersivo de gosto inó...inó..inóoocu, és tu meu grande cabrão.
E avançou para o infeliz como elefante em loja de porcelana, reacendendo a pancadaria. Desta vez, mais feroz que nunca entre os da terra, solidários com o Décio e o alarve de Sta. Catarina.
Era também na tasca do Valente que o tio Campina dava consulta.
Vesgo do olho esquerdo, ganhou fama nacional de “endireita”. A clientela vinha de longe, até mesmo dos confins do Alentejo. Em geral chegavam em grupo, com ar de cão espancado, coxeando ou andando de esguelha com dores no lombo.
Paravam à porta e olhavam a medo para dentro da taberna, não se sabia se pelo aspecto dos frequentadores, se por adivinharem o tratamento de arrepelão por que iriam passar. Finalmente entravam, um por um, e sentavam-se nos bancos corridos, em fila, ao longo da parede, como pássaros numa linha de telefone.
Em geral os receios e timidez iam derretendo à medida que o tempo passava e o diálogo com os presentes começava. De onde eram, de onde não eram e uma descrição detalhada das dores. O coice da mula, a queda da escada na caiação da casa, ou mesmo mau olhado, porque as dores que sentiam pelo espinhaço acima, vinham sempre pelo quarto minguante, já há vários quartos minguantes, e não haviam meio de passar.
Tanto sofrimento merecia da parte dos da terra, uma rodada espontânea de tinto, e das bolsas de pano dos visitantes, saíam então linguiças caseiras e nacos de presunto que eram postos à disposição dos anfitriões. Da cozinha vinham ainda em jeito de retribuição, pratos de peixe frito. O ambiente era de festa e a confraternização geral.
O tio Campina deixava que as coisas corressem deste modo, consentindo um ante-preparo mental da clientela, sabendo que os doentes descontraiam assim, um pouco os músculos doridos pela maleita, pela ansiedade dos dias de trabalho perdido e pela incerteza da cura.
Autodidacta, aprendeu literalmente às apalpadelas. Após muitos anos de prática, conhecia por intuição e também por prévia informação do oficio do queixoso, os esforços físicos que o mesmo despendia e as zonas do corpo sujeitas a padecimento.
Quando entendia que os corpos e as mentes se tinham em certo grau amolecido com os vapores do carrascão, convocava o primeiro enfermo que mandava deitar num banco de madeira.
Endireitava o chapéu ensebado, que usava tombado para um lado da cabeça. Se o desmancho era de um braço, sentia a zona dorida com a ponta dos dedos e fazia alguns movimentos circulares com uma mão segurando no ombro e a outra segurando no cotovelo. Quando o sentia distraído e as dobradiças menos deslizantes, dava-lhe o famoso esticão de “endireita” e então ouvia-se um estalo seco, que tanto podia ser o osso a encaixar no lugar, como a dentadura do freguês numa contracção de dor.
Se era do tronco, metia a cabeça da vitima debaixo do braço e abraçava-o pelas costelas, tal como um forcado pega um touro e dava-lhe pequenas sacudidelas, às vezes com um assistente agarrado às pernas do infeliz. Os áis de apreensão e urros de dor, eram solidariamente sentidos e partilhados pelos presentes que assistiam em silêncio a esta tragédia.
Depois do tratamento de choque, passava ao tratamento de amaciamento, onde era pródigo no uso de emplastros “Leão” que colava como remendos no lombo dos doentes, ou enrolava-os metodicamente com ligaduras de pano que o Reis da farmácia cortava em tiras, de grandes lençóis de linho. Aqueles que tinham maiores desmanchos nos costados ou na caixa do peito, marchavam dali mais parecendo múmias egipcias...
Em seguida mandava vir uma garrafa de aguardente e um copo. Se as partes ligadas eram pequenas, vazava um copo por cima das ligaduras e bebia outro, se as partes eram grandes, vazava vários e bebia outros tantos numa proporção lógica da extensão do desmantelamento, do esforço despendido, e na preparação da cura. Finalmente, tirava o chapéu, e rezava um Padre Nosso e três Avé Marias.
Ao cabo do quinto tratamento, já atordoado, e a saírem balbuciantes as rezas, dava por terminado o expediente do dia. O preço? Era “o que vossemecê quiser dar” e o cliente ia então à vida, satisfeito, apregoando daqui, até aos confins do Alentejo, a delicadeza do trato e a sabedoria do curandeiro.
Texto de João Marcelino
As fotografias foram retiradas daqui e aqui, servem apenas para ilustrar a história e não têm qualquer relação com relatos contados nesta crónica.
Alice Alfazema