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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

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em forma de agradecimento

24
Mar22
 

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Ilustração Egle Plytnikaite

Hoje assisti a algo surpreendente, uma semente de sonho.

À hora de almoço, decidi ir ver o rio, como já tenho dito gosto de ver o rio em dias de mau tempo, gosto especialmente de comparar a cor da água com a do céu, as matizes cinzentas que se desdobram multiplicando-se até sermos incapazes de as contar.

Foi uma visita rápida, um toca e foge, havia alguns homens à pesca à linha, vi que a relva do jardim estava crescida deixando ver os trevos e os dentes-de-leão em pleno fulgor, não tive tempo de encontrar um trevo de quatro folhas, começou a morraçar e tive de abrir o guarda-chuva.

Apressei o passo pois a hora do almoço passa rápido, na minha frente ia uma mulher com uma miúda pequena pela mão, talvez com quatro anos, cabelo loiro penteado num rabo-de-cavalo minúsculo espetado no alto da cabeça, trazia vestido um casaco polar cor-de-rosa que lhe dava até ao joelho, eu na pressa nem tinha dado conta que ela me fazia adeus, em passo apressado alcancei-a depressa e mais uma vez ela voltou-se para trás para me fazer adeus, retribuí sorrindo, mas depois lembrei-me que tinha a máscara na cara, levantei a mão e acenei-lhe de volta, verifiquei que ficou feliz com o meu gesto.  Entretanto, tínhamos chegado perto da passadeira, aproximou-se uma senhora para também passar a estrada, a miúda puxa a mãe para perto da mulher, e sem nunca largar a mão da mãe a miúda faz festinhas à mulher, a senhora contente com o gesto pergunta-lhe o nome, não percebi o que a miúda disse, apenas ouvi a mulher responder-lhe "não sabes falar?", para logo depois perguntar à mãe: "vieram da Ucrânia?", ao que a mãe respondeu com um afirmativo aceno de cabeça, entretanto já a miúda tinha agarrado a mão da senhora, por momentos ficaram as três de mãos dadas, senti as lágrimas nos olhos perante a ternura daquela miúda, nada do que possa aqui escrever é capaz de descrever aquilo que senti, foi um momento tão límpido de amor, que julgo que é isto que se chama um sentimento de Paz.

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
.
eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
 
Eu cresci a ouvir este poema de António Gedeão cantado pela voz de Manuel Freire, foi um poema que marcou uma geração reprimida por uma ditadura fascista e atormentada por uma guerra colonial, uma geração ávida de liberdade em que o sonho se afirmava como o único caminho. Sempre que penso em Liberdade vem-me à memória estas palavras e esta voz.
 

  

 
 
 

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