Qual a melhor palavra para descrever este primeiro pôr do sol em 2022?

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Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.
Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.
Alberto Caeiro

Ilustração Virginia Soriano Gayarre
Depois de tanto tempo sem ir às compras hoje fui ver as montras e pela primeira vez em meses entrei numa loja, comprei linha de algodão para crochet, elástico e tecido não tecido. Havia muita gente na rua, algumas pessoas andavam de máscara, outras nem por isso, umas tinham-nas ora no queixo, ora com o nariz de fora, as lojas estavam animadas de gente, não que tivessem apinhadas, nalgumas lojas apenas podiam entrar uma pessoa de cada vez, não havia filas nas lojas de roupa, apenas na sapataria. O colorido de gente a andar nas ruas dava uma animação visual de ânimo, um miúdo tocava guitarra no largo, e as árvores estavam floridas, enfim um dia quase igual a tantos outros do passado, não houvesse o medo escarrapachado a cada olhar mais atrevido. Agora são os olhares que se sobrepõem às outras expressões faciais.
O mais estranho é o silêncio, como se andássemos pé ante pé, há gente na rua, pessoas de um lado para outro, gente nas esplanadas, mas não se ouvem as conversas. Parece-me que as pessoas têm medo de falar, será para o bicho não as ouvir? Faltam os risos a ecoar nas ruas. Faltam os gritos das mães que chamam os filhos. Falta tanto e quase tudo parece igual. Há as idas à praia, e os grandes ajuntamentos para comemorar, mas comemorar o quê? A volta do lixo às praias, às ruas, à Serra? As festas a que se vai cheias de gente que se desconhece e não se sabe muito bem porque se está ali?
É como se os vícios voltassem em força, depois de uma ressaca dura e brutal, em que pensámos que seríamos capazes de ultrapassá-los, tal como um drogado julga que é apenas mais esta vez. E as praias estão cheias de máscaras, rios de lixo descartável, as bermas da estrada que corre pela Serra estão atulhadas deste lixo, de garrafas, de tudo o que não querem carregar, que miséria, que "porca miséria".
Passei pelos jacarandás em flor, olhei para o céu para visualizar aquele contraste de azuis, algumas nuvens faziam de conta que se escondiam entre os ramos. Fui ver o Rio, estava vento, e ele estava crispado, também eu me sentia assim, não dissemos nada um ao outro, nada havia por dizer, apenas vergonha, a minha.

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia(1944)
As ilustrações são de Virginie Cognet