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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

A minha casa redonda

16
Mar19

 

Ilustração  Giuseppe Sticchi

 

Se a minha casa fosse redonda não teria de limpar os cantos, nem de me preocupar em endireitar os cortinados. Subiria cada degrau como se fosse o primeiro, até chegar ao último. As mesas seriam redondas sem bicos nem esquinas. Um começo de ciclos sem fim, sempre a rodar e a rodopiar. Os dias seriam redondos e não compridos.  As noites redondas  e arejadas dadas à imaginação. Nada de esquinas em cada parede, tudo arredondado e macio, sem cortar a sensação de continuação.

 

Por baixo

10
Mar19

chuva.jpg

 

 

 

Minha imaginação é um Arco de Triunfo.

Por baixo passa roda a Vida.

Passa a vida comercial de hoje, automóveis, camiões,

Passa a vida tradicional nos trajes de alguns regimentos,

Passam todas as classes sociais, passam todas as formas de vida,

E no momento em que passam na sombra do Arco de Triunfo

Qualquer coisa de triunfal cai sobre eles,

E eles são, um momento, pequenos e grandes.

São momentaneamente um triunfo que eu os faço ser.

 

 

O Arco de Triunfo da minha Imaginação

Assenta de um lado sobre Deus e do outro

Sobre o quotidiano, sobre o mesquinho (segundo se julga),

Sobre a faina de todas as horas, as sensações de todos os momentos,

E as rápidas intenções que morrem antes do gesto.

 

 

Eu-próprio, aparte e fora da minha imaginação,

E contudo parte dela,

Sou a figura triunfal que olha do alto do arco,

Que sai do arco e lhe pertence,

E fita quem passa por baixo elevada e suspensa,

Monstruosa e bela.

 

 

Mas às grandes horas da minha sensação,

Quando em vez de rectilínea, ela é circular

E gira vertiginosamente sobre si-própria,

O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,

E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,

E toda a gente que passa,

E todo o passado da gente que passa,

E todo o futuro da gente que passa,

E toda a gente que passará

E toda a gente que já passou.

Sinto isto, e ao senti-lo sou cada vez mais

A figura esculpida a sair do alto do arco

Que fita para baixo

O universo que passa.

Mas eu próprio sou o Universo,

Eu próprio sou sujeito e objecto,

Eu próprio sou Arco e Rua,

Eu próprio cinjo e deixo passar, abranjo e liberto,

Fito de alto, e de baixo fito-me fitando,

Passo por baixo, fico em cima, quedo-me dos lados,

Totalizo e transcendo,

Realizo Deus numa arquitectura triunfal

De arco de Triunfo posto sobre o universo,

De arco de triunfo construído

Sobre todas as sensações de todos que sentem

E sobre todas as sensações de todas as sensações...

 

 

Poesia do ímpeto e do giro,

Da vertigem e da explosão,

Poesia dinâmica, sensacionista, silvando

Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo,

Em grandes rios de chama, em grandes vulcões de lume.

 

 

 

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  - 28.

 

 

Mesmo com a boca fechada

26
Mai18

 

Ilustração  Catherine Campbell 

 

 

 

Sou o pássaro que canta
dentro da tua cabeça
que canta na tua garganta
canta onde lhe apeteça

Sou o pássaro que voa
dentro do teu coração
e do de qualquer pessoa
mesmo as que julgas que não

Sou o pássaro da imaginação
que voa até na prisão
e canta por tudo e por nada
mesmo com a boca fechada

E esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada
senão para ser cantada
quando os amigos se vão

E ficas de novo sozinho
na solidão que começa
apenas com o passarinho
dentro da tua cabeça.

 

Manuel António Pina