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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Conversas da escola - O estupor da folha

29
Jun20

Uma senhora vem acompanhada, ou é acompanhante, de bebé de colo, criancinha de três anos e uma miúda de dez anos...vêm todos entregar os manuais da mana mais velha. O livro de português tem a folha de rosto escrita, como todos sabem, (alguns ainda continuam por saber), não é para escrever nos manuais, porque os manuais são para ser reutilizados, blá, blá, blá...Ora se a folha de rosto do livro de português está escrita o que fazemos? 

1- Apagamos o que está escrito.

2- Tentamos resolver o assunto de outra forma se não der para apagar.

3- Enquanto a funcionária anota os outros livros, rasgamos a folha num ápice, vulgo arrancamos, e esperamos que tenhamos sido suficientemente rápidos para que ela não tenha notado, caso note, dizemos que era apenas uma folha de rascunho. 

 

 

Poemas cantados

17
Jun20

rebuçado.jpg

 

Ilustração Catherine Chauloux

 

 

 

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
A outra metade é silêncio

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Pois metade de mim é partida
A outra metade é saudade

Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas como a única coisa
Que resta a um homem inundado de sentimentos
Pois metade de mim é o que ouço
A outra metade é o que calo

Que a minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que mereço
Que a tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
A outra metade um vulcão

Que o medo da solidão se afaste
E o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita meu rosto num doce sorriso
Que me lembro ter dado na infância
Pois metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade não sei

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o seu silêncio me fale cada vez mais
Pois metade de mim é abrigo
A outra metade é cansaço

Que a arte me aponte uma resposta
Mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Pois metade de mim é plateia
A outra metade é canção
Que a minha loucura seja perdoada
Pois metade de mim é amor
E a outra metade também

 

Poema de Oswaldo Montenegro

 

 

 

The Sound of Silence

16
Jun20

 

Nos últimos tempos a rapariga do segundo andar tem tocado no seu contrabaixo, o som propaga-se até à minha sala, e fico ali a ouvir, é um privilégio que me encanta e me transporta para outros lugares, o som baila de lá para cá, fascina-me o serpentear das notas, a cadência de cada pausa, e o meu corpo agradece, sinto-me em paz, uma paz que me apazigua, como se uma mão gigante pairasse e me desse colo, num embalo leve de aconchego. Vou e venho sem sair daqui. A música tem aquela magia que já tenho saudades de sentir, numa cadeira a olhar o palco. Mesmo que eu não saiba interpretar uma pauta, nem uma clave de Fá, acordo a perceber que tudo se entende. 

 

O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora
engrandecido dentro do novo olhar.

 

 

Fiama Hasse Pais Brandão, in As Fábulas