Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Sonhos impossíveis

07
Fev21

 

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis.
 

Bernardo Soares , do Livro do Desassossego

 

Tudo agora parece impossível, estamos dentro de um cerco invisível, as saudades agigantam-se e as preces são repetitivas, qual oração não o é? A nossa janela de oportunidade parece afunilar-se, como um óculo ao contrário. De longe a longe, faz-me falta o silêncio, faz-me falta estar sozinha, faz-me falta outras vozes. Sinto-me como aquela camisola de lã que encolheu com a lavagem inadequada, sou a mesma, mas deixei de ser quem era, num ápice. Tenho pensado muito que estou na minha etapa final, não viverei mais do que já vivi, importa-me começar, fazer o que não fiz, por em prática planos, e sobretudo acreditar, arriscar. Um pouco de loucura para terminar.

 

 

"Mostra-me como as pedras são engraçadas..."

29
Jan21

Estamos todos exaustos disto tudo, das notícias, da falta de esperança, do desassossego, do medo, do cansaço de não nos ser permitido sair, da falta de convívio, do silêncio e da morte. Importa assim,  exercitar o músculo, por vezes desconhecido, que  é o nosso cérebro,  tendo novos pensamentos, criando sugestões positivas, enfim cuidar da nossa sáude mental. Decifrar o que realmente vemos é o que hoje vos sugiro. As imagens são de Martina Grasso e o texto é de Rubem Alves.

nn.jpg

 

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões… Agora, tudo o que vejo me causa espanto.”

 

nnn.jpg

 

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda. Procurei a “Ode à Cebola” e lhe disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ‘Rosa de água com escamas de cristal’. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta… Os poetas ensinam a ver”.

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

 

nnnn.jpg

 

William Blake sabia disso e afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

 

Adélia Prado disse: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”. Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. “Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do “terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram”.

 

nnnnn.jpg

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, “seus olhos se abriram”. Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em “Operário em Construção”: “De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção”.

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam… Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: “A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas”.

Por isso porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver, eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade quotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos”…

*Rubem Alves, crônica “A complicada arte de ver”. publicada originalmente em Folha de S. Paulo, 20.10.2004.

 

 

 

Resiliência

17
Set20

vooo.jpg

 

Vamos começar agora uma nova fase da pandemia, uma fase em que será necessário uma forte resiliência, em que devemos, mais do que nunca, estar atentos aos riscos físicos, é certo que possuímos a informação para a nossa protecção, aquela que se julga apropriada à situação. Mas ninguém nos prepara para a solidão, para o vazio, para a falta de afecto, não que não haja isto tudo, mas falta a presença, falta o calor do abraço, o toque dos beijos, e a espontaneidade disto tudo.

 

águia.jpg

 

Vamos imaginar que o tempo vai passar rápido, vamos dar voz à nossa falta, porque é preciso interagir de outras formas, e nos motivarmos, e trocarmos experiências, e fazermos valer a sabedoria que há na amizade e na diversidade. Porque a saúde mental não deve ser descurada em prol da física, porque uma complementa a outra. Assim como no bosque a águia domina o dia e a coruja domina a noite. Assim como a árvore se curva a favor do vento. Assim como o girassol segue a luz que nos dá vida. Assim tudo isto vai terminar um dia, mas até lá eu, tu, nós estamos juntos no mesmo caminho, percorrendo lado a lado uma época que ficará para a História. Eu estarei aqui, e espero por vós aí desse lado. Mesmo que eu não responda a comentários, estarei aqui, colocando um poema, escrevendo um texto, partilhando fotografias, cozinhados, um pedaço do meu dia - acima de tudo preencher o vazio de quem vagueia e dar sentido ao meu. 

 

As fotografias são de Anthony - A Bucci Photography

Julho 1944

Auschwitz

02
Jul20

IMG_4191.JPG

 

Quando brilhou a aurora, dissolveram-se
Entre a luz as florestas encantadas,
Arvoredos azuis e sombras verdes,
Como os astros da noite embranqueceram
Através da verdade da manhã.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia, 1944

 

Tenho estado a ler sobre Auschwitz, Julho de 1944, é-me difícil de ler, tenho-o lido aos poucos, continuo surpreendida com as atrocidades ali cometidas, com a banalização do sofrimento, com a brutalidade da morte, da morte lenta, da morte através da escolha da vida com um simples gesto para a direita ou para a esquerda, as memórias das filas intermináveis de gente, as pilhas de roupas e de pertences expostos ao longo da linha férrea, dos fornos onde milhares de corpos foram queimados, do cheiro adocicado no ar, do desaparecimento de famílias inteiras, onde o lucro das empresas de produtos químicos e os negócios paralelos que reinavam acima de tudo e de todos os infelizes que ali iam parar, as experiências laboratoriais com o à vontade sobre o sofrimento e a morte alheias. 

Julho de 2020. Por todo o lado se fala acerca do problema da saúde mental que vamos ter de enfrentar por termos ficado confinados durante este tempo, pela perda de muitos empregos, pela falência de muitas empresas,  pelo medo instalado de contrair a doença, pela ansiedade em relação ao presente e ao futuro. E eu pergunto-me, o que  fizeram estas pessoas que viveram o Julho de 1944, para poderem ultrapassar as suas memórias e as suas perdas, enquanto Sophia escrevia sobre as florestas encantadas?