Dezembro
2020
O primeiro dia é sempre de admiração, depois de dividirmos os meses em montinhos de trinta, ou mais ou menos trinta. Como se os dias ficassem mais leves de contar se estiverem agrupados em prateleiras certas e quase iguais. E os últimos trinta e um do ano chegaram. Parecem-me os restos de um café com leite que ficou no fundo de uma caneca, e que alguém te obriga a beber tudo até ao fim, já frio, com migalhas ensopadas. Toma lá o resto, vá só falta isso, mais um golo, depois podes ir à tua vida.
Lá fora os gnomos trabalham rápido, para que nenhuma brincadeira fique esquecida. Um deles é redondo e tem muitos picos, anda por aí desvairado, louco para alcançar o mais distraído.
Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
Poema de David Mourão-Ferreira, in ‘Cancioneiro de Natal’
As ilustrações são de Briony May Smith