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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Vidas paralelas

22
Nov20

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Ilustração João Fazenda

 

Coloquei o bolo no forno, mas antes fiz a massa a preceito, batendo as claras até ficarem leves, depois envolvi-as no resto da massa tendo o cuidado de não bater em demasia o preparado. Tinha muita fé nisso, que o bolo ia subir e ficar fofinho. Uma delícia. Coloquei o bolo no forno, e passados cinco minutos espreitei, abri a porta do forno muitas vezes, na esperança de acompanhar melhor o seu crescimento. O bolo murchou, ficou duro e de nada serviu o meu zelo a fazer a massa. 

E tu que pões a máscara em todo o lado, mas que te esqueces do resto, pensas também que o teu bolo vai crescer? 

 

 

Debaixo das telhas

20
Nov20

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Ilustração Tran Nguyen

 

 

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!


Poema de Rachel de Queiroz

 

 

 

 

 

 

A arte de saber sonhar

Não é para toda a gente

15
Nov20

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Ilustração Ana Ayala

 

Nunca tive grande capacidade para sonhar. Aquela coisa de visualizar aquilo que quero e transformá-lo em realidade comigo não funciona. Disperso-me facilmente e sou levada para pensamentos diversos, depois fico baralhada e já não sei o que quero realmente. Imagino então a ver-me em coisas sérias e importantes, mas depois dou mais importância àquilo que poderia acontecer se fosse antes assim ou assado. Desisti, e deixo então tudo ao capricho do Universo.

No outro dia sonhei e acordei muito assustada, o meu coração batia apressadamente, foi um sonho muito actual, onde eu estava de máscara a ver-me ao espelho, de repente tirei a máscara e vejo a minha imagem reflectida já sem a máscara, vejo uma grande sombra no meu rosto, volto a olhar, arregalo os olhos, tinha um bigode tamanho XXl, e eis que me ocorre um pensamento, isto foi de andar tanto tempo de máscara, criei uma estufa de bigodagem.

 

 

A pandemia das ideias e dos outros

COVID-19

09
Nov20

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As medidas quando são tomadas de modo contraditório, denotam a desorientação das ideias, levando à desorganização dos sistemas. Podemos ir ao supermercado, mas não podemos andar na rua, podemos ir trabalhar em transportes cheios, mas não podemos ir ao restaurante durante o fim-de-semana. As escolas estão cheias, mas não são focos de vírus. Ando bêbada e não sei qual a bebida que ando a tomar. 

 

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Não morremos do mal, vamos morrer da cura. Podes estar com a tua família, mas se viveres sozinho deves manter-te assim. Ouves falar que as camas dos cuidados intensivos estão esgotadas em certo hospital,  tens curiosidade em saber quantas são e sabes depois que resumem-se a umas dez. Questionas-te, afinal há muitos doentes, ou poucas camas? Noutros há camas, mas não existem recursos humanos. E passamos meses nisto.

 

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Fala-se em fome, perda de empregos, aumento de outras doenças, e um galopante agravamento da  miséria. Isso preocupa-me. Quais serão as medidas restritivas da miséria? Mais uma vez tudo se baseia em números. O pânico alastra-se, assim como a ignorância. 

 

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Temos a mania que não somos animais, no entanto apanhamos os mesmos vírus. Este ser que somos e elevado à imagem de Deus aparece agora indefeso perante um organismo invisível. Temos então mais um fantasma para nos assombrar os dias. 

 

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E se Deus for a terra que pisamos? E se o bater sísmico que se ouve a cada vinte e seis segundos for o coração de Deus? Estará Deus farto de nós? Os fantasmas são agora os sacos plásticos que transportamos para casa, os materiais que lavamos transloucadamente, mesmo que no intimo lá nos passe pelos neurónios que o vírus poderá já estar inactivo ou sem grande carga viral. 

 

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Quantas máscaras mudamos por dia? Nem sei. Desapareceram dos jornais televisivos as crises humanitárias, a fome e a seca em África, e tantos outros assuntos que levam a mortes diárias não contabilizadas para pandemia. "Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas", fingindo que só temos um problema quando somos levados a pensar que há apenas um problema por resolver. O sentido crítico deixou de existir, passamos assim a coexistir com o pensamento único, que é agora a direcção que nos apontam, e a qual não devemos - nunca - questionar, como forma de sermos postos de parte, tal como quando temos um vírus desconhecido. 

 

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As ilustrações são de Alan Macdonald