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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

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20
Set18

 

Ilustração  Fernando Cobelo

 

 

 

 

Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido — tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver é um doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio (e o único modo de vida que a um sábio convém e aquece).

 

Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.

 

A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.

E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação — como está? — de ser uma indesculpável grosseria e o ser ela em geral absolutamente vã e insincera.

 

Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).

 

Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os actos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros — para saber bem, ao agir ao contrário, quem somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.

 

 

 

 

in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares

 

Circular

03
Set18

 

Ilustrações de  Roman Muradov

 

 

Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro. Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário. Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos. O latejar do tempo na humidade dos lábios. E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos. As estrelas mortas das cidades imaginadas. Os ossos (tristes) das palavras. A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.

 

 

 

Em redor dele chove. Podemos adivinhar um chuva espessa,negra, plúmbea. Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge,esvoaça. As cidades(como em todos os livros que li) ardem. Incêndios que destroem o último coração do sonho. Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha, absorto, a laranja.

 

 

 

A queda da laranja provocará o poema? A laranja voadora é, ou não é,uma laranja imaginada por um louco? E um louco, saberá o que é uma laranja? E se a laranja cair? E o poema? E o poema com uma laranja a cair? E o poema em forma de laranja?

 

 

 

E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?(...)

 

 

 

 

 

E a palavra laranja existirá sem a laranja? E a laranja voará sem a palavra laranja? E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a (esquecer) no meio da noite-servirá(o brilho)da laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se a laranja se deslocar no espaço-mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita-criaráuma ordem ou um caos?

 

 

 

 

O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade. Foi escorraçado.(E)na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos. Os seus próprios gestos-e um rosto suspenso na solidão. Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração?

 

E se escreveu laranja na alma,a alma ficará saborosa? E se escreveu laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer? E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará? Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema-a Vida, sem mais nada-estará aqui? Fora das muralhas da cidade? No interior do meu corpo? ou muito longe de mim-onde sei que possuo uma outra razão...e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente.

 

 

Al Berto, pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

 

O segredo

17
Ago16

Vou-vos contar um segredo que vai mudar as vossas vidas para sempre. É um segredo que merece ser revelado. Nos dias que correm cada vez vivemos mais stressados, com raivinhas disto e daquilo. Uns sentem-se incompreendidos, outros injustiçados e por ai fora. Cada qual com os seus problemas. 

 

O segredo que tenho para vos contar é verdadeiramente perturbador, de tão simples que é. Não o encontrei em nenhum livro de auto-ajuda, nem mo disse nenhum especialista credenciado. 

 

Como sabem, eu tenho um cão, o Ginjas. Este gracioso animal é uma alma que vive em liberdade de vontades, nunca foi treinado, faz o que lhe dá na real gana. O Ginjolas gosta muito de dar dentadas. Sabe que não gosto disso, mas ele não resiste, aquilo é mais forte do que ele. Então ele arranjou uma estratégia para contornar essa vontade, para se tornar mais sereno, para conseguir vencer os ralhetes. Assim quando a vontade lhe chega à sua alma de cão, ele em vez de ferrar o dente e ter maus pensamentos, boceja, transforma a dentada num relaxante bocejo. Portanto, minha gente, quando sentirem que vão explodir, quando não aguentarem a pressão...Bocejem. Quanto mais bocejarem mais relaxados hão-de ficar e o sentimento de bondade voltará para vós. Eis o segredo revelado. Aproveitem e partilhem, porque a lei da atracção é infinita. Abençoado universo que me fizeste conhecer este cão maravilhoso.

 

 

Alice Alfazema

Alma

30
Ago15

Ilustração Masha Kurbatova

 

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e do que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama

 

Alice Alfazema