Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Para memória futura

22
Fev13

 

 

Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve breve
instante da loucura.

 

 

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.
 
Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.
 
Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.
 
Minha laranja amarga e doce
minha espada
poema feito de dois gumes
tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
este corcel que não sossego 
à desfilada no meu peito
 
Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.
 
Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura
 
Minha ousadia
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.
 
José Carlos Ary dos Santos


Alice Alfazema

11
Fev13

 

Há mais aqui.

 

A Nossa Crise Mental Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político, moral e intelectual? 

A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo. 

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima). 

Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise. 

As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto. 

Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer. 


Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

 

 

Alice Alfazema