Havia na floresta um roble cheio de anos,
Vestido de hera anciã, decano entre os decanos
Dos bosques do arredor. Raízes colossais
Prendiam-no à terra; ao ar descomunais
Os braços elevava, e ao vê-lo assim dir-se-ia
Que aos outros vegetais as bênçãos estendia.
Velho, e ainda a primavera o vinha requestar;
O outono desfolhava-o em último lugar;
Opunha ao sol do estio a fronde espessa e bela;
Respeitava-o no inverno o raio da procela.
Viu passar gerações após gerações
Em risos e em pranto, em festas e orações;
Viu crianças pedir-lhe a sombra grata e amena
Que, amantes ao depois, naquela mesma cena
Viu a falar de amor, e no seu tronco abrir
Duas iniciais que liam a sorrir;
E mais tarde ainda os vira, velhos, encanecidos,
Pedir-lhe em vão alento aos lânguidos sentidos,
A repousar ali. A coma erguida ao céu
De longe se mostrava envolta inda no véu
De névoas da distância. Ao regressar à aldeia,
Ansiava o lavrador por avistá-lo, e a ideia
De tudo quanto amava o vinha comover:
Do lar, do velho pai, dos filhos, da mulher.
Que olhos de tanto amor, de penas e esperanças
Lhe enviavam também saudosas as crianças
Ao deixarem a casa, a pátria, irmãos e mãe
Indo tentar porvir por esse mundo além!
Em que tempo nascera esta árvore gigante?
Que época viu crescer o arbusto vacilante,
Curvando-se por terra a cada viração,
Esse que já nem teme ameaças do vulcão?
Quem o pode dizer? Nas trevas se envolvia
A infância do colosso. E quando acabaria?
Que audaz raio do céu, que convulsão fatal
Por terra lançará o enorme vegetal?
Mas, ai, o que a tormenta e o tempo não consomem,
Muitas vezes destrói a ousada mão do homem;
Em vão a tempestade incólume o deixou:
O golpe de um machado um dia o derrubou,
E ao braço do homem cai, dos homens o amigo.
Ouvi a narração do caso, que eu prossigo.
É pela madrugada! hora que a amar induz;
Todo é verdura o campo, o céu é todo luz.
O roble colossal no tronco encarquilhado
Sente a seiva girar. Das aves o trinado
Se ouve na espessa copa, e ao festival clamor
Respondem num sorriso a borboleta e a flor.
Como um velho entretido a ouvir cantar os netos,
Que lhe passam nas cãs os dedos desinquietos,
Assim ele também, vulto austero e senil,
Se compraz a escutar a música de Abril,
Os trinos e o bater das asas na folhagem,
A turba jovial, da infância alada imagem.
De súbito cessou das aves o cantar;
Param, olham com medo o chão, o bosque e o ar.
No seio da floresta um som vago se escuta,
Como o rugir do mar quando nas praias luta.
O roble estremeceu, ouvindo: “Que será?
Que sinistro rumor é esse?” – Perto já
Se distingue melhor. É um travar de vozes
De alguns homens do campo, alegres e velozes.
O roble sossegou, e às aves disse assim:
– “Podeis ficar sem medo aqui ao pé de mim,
São amigos que vêm, pobres trabalhadores,
Sobre quem eu estendo os ramos protetores,
Quando, durante a sesta, o sol ardente cai.
Aves, não receeis. Amigos são, cantai.
Vede, pararam já. Tenta-os a fresca selva,
O machado, o alvião pousaram sobre a relva.
Vão descansar decerto. Ergueram para aqui
O olhar; a gratidão bem claro nele vi.
Cantai, aves, cantai nos ramos da floresta,
Enquanto eu lhes protejo a procurada sesta.”
Assim disse o carvalho às aves, mas em vão,
Que nenhuma a cantar inda se atreve então,
Ou, se alguma o tentou, emudeceu no meio,
Que só para gemer lhe deu vigor o seio;
Parecem pressagiar um vago e oculto mal,
Como quando no céu preveem temporal.
Mas já ordens se dão; preparam-se os obreiros;
Reparte-se a tarefa; exercem-se ligeiros;
Já tudo está disposto, e pronto a uma voz.
Eis se dá um sinal… rapidamente após,
De um dos homens do bando o industriado braço
Lança em volta do tronco traiçoeiro laço.
E as aves a tremer!… “Doidas!” Assim lhes diz
O velho, sacudindo a secular cerviz:
“Das crianças é este um usual brinquedo:
Embaladas assim nos braços meus, sem medo,
Em jogos infantis se aprazem. Não fujais.
Doidas que sois! Dizei, do que vos receais?
Vê-las-eis cedo vir, e o peso é tão suave,
Que me alegra! A criança é pouco mais que a ave.
Não aves, não fujais, que são vossas irmãs,
Ligeiras como vós, e como vós louçãs!”
Fez-se ouvir de repente um som rápido e seco,
Que teve na floresta um temeroso eco.
O tronco estremeceu. As folhas sem vigor
Caíram pelo chão, quais lágrimas de dor.
As aves a gemer, das frondes sacudidas
Fugiam em tropel como ilusões perdidas!
No tronco, em fundo golpe, o ferro penetrou;
A árvore, ao senti-lo, um pouco vacilou,
Mas depois disse ainda às pobres andorinhas
Ocultas, a tremer, nas árvores vizinhas:
– “Foi doloroso o golpe! útil porém talvez.
O destro rachador derruba muita vez
Algum ramo já velho, inútil parasita,
E à fecundante seiva o curso facilita.
Agora foi mais fundo, e rijo o golpe foi,
E perto da raiz. Por isso mais me dói!
Errou talvez ao dá-lo a mão inexperiente.
O golpe foi cruel. Se foi! mas inocente.”
Eis que, ao primeiro golpe, um outro se seguiu,
E outro, mais outro e outro; e o eco os repetiu,
E as aves a carpir do velho amigo a sorte.
Não se ilude ele já; ferido pela morte,
Falece-lhe o vigor; das achas ao brandir
Vacila, geme e ondeia! E próximo a cair.
Prossegue no entretanto a abominável obra,
Da turba afadigada o vozear redobra,
No íntimo do lenho, o ferro ímpio, cruel,
As fibras despedaça. Os homens em tropel
Arredam-se a distância, a fim que os não esmague
O gigante ao cair, e moribundo pague
A morte que lhe dão sacrílega e atroz.
“À obra, à obra”, então alto soa uma voz,
E todos lançam mão da preparada corda.
A triste ave da noite à vozearia acorda,
Solta um lúgubre pio. Um frêmito sutil
Nas folhas passa ao roble. A brisa foi de abril
Que veio ali dizer-lhe a extrema despedida?
Beijá-lo a última vez, saudosa e comovida?
Oscila, geme ainda, estala-lhe a raiz,
Solta como estertor de morto. Ouvis?… Ouvis?
Inclina-se para a terra, em queda suave, lenta,
Desce… desce e, descendo, a rapidez aumenta.
Até que com fragor na relva ao longe cai
O roble secular! Homens, folgai! Folgai!
Retumba na floresta o som que fez na queda,
O fragor do trovão nos ares arremeda,
E as aves, levantando o voo alto e veloz,
Às nuvens vão contar o caso iníquo e atroz;
E com sentido pranto, e em queixas magoadas,
Choram-no pelo bosque as comovidas fadas.
E a obra do senhor às mãos do homem caiu!
E a vida secular numa hora se extinguiu.
E os obreiros do mal saem dali cantando.
Chega logo depois um turbulento bando
De crianças, que a rir, o tronco sem vigor
Calcam, brincando. E após em práticas de amor,
Voa rápido o tempo a amantes e a esposos
Que ali falando vêm. Depois, velhos, saudosos
Do tempo que passou por eles em comum,
Sentam-se a conversar. Mas deles, ai, nenhum
Uma lágrima tem para desgraças destas.
Homens, que mal vos fez o velho das florestas?
Poema de Júlio Dinis