Marianne
Muitas vezes a história foi esquecida e há por vezes um pensamento geral de que as coisas são assim porque sim, sem outra explicação. A inércia em que se vive, esperando que os obstáculos sejam transpostos por anjos, e eis que os demónios do passado voltam.
" Olhe, camarada: quanto ao exercício da nossa profissão, somos obrigadas, por vezes, a levantarmo-nos da nossa cama a qualquer hora da noite, isto é, quando ao industrial apetece, para virmos para a fábrica, muitas vezes debaixo de chuva, a fim de trabalharmos sete, oito, dez e onze horas, para ganharmos apenas 180 réis, que corresponde a 5 horas de trabalho. Para o industrial ganhar mais, obriga-nos a trabalhos que só pertencem aos trabalhadores, como mouras, pregar caixas e trabalhar com as ferramentas e isto porque ganhamos menos e porque temos mais horas de trabalho que os nossos camaradas trabalhadores.
Quando nos falta dinheiro na féria, nem querem que a gente reclame essa falta, impondo-nos ao silêncio ou a rua.
Somos obrigadas a dar o peixe em volta das mesas, serviço que deve ser feito por rapazes, pois estamos expostas a insultos de elguns camaradas menos delicados.
Temos as multas, a que eles chamam "horas a baixo", e o castigo corporal para os nossos filhos e filhas, sem respeito algum pelo sexo e pela situação.
A maior parte das oficinas é tudo quanto há de mais porco. A água da salmoura corre pelo chão, encharcando-nos os pés, e o ar é empestado, chegando, especialmente de verão, a dar-nos desfalecimentos quase de sufocar.
As nossas filhas são muitas vezes chamadas ao escritório demorando-se tempo imenso, ficando nós em ânsias por saber o que se passa, vemo-las a vir chorosas, e ai de nós, já sabemos - é a desonra, a desfloração e ninguém os pune.
Rapariga bonita tem de ser amante do industrial, do gerente e de todos que a querem prostituir, pois que não pode haver respeito quando o mal vem de cima. Se alguma resiste, vem a multa, a pancada e, por fim, o despedimento, que é o principio da fome.
É isto, camarada, que nós não queremos sofrer mais. Estamos fartas.
Preferimos morrer, mas não ceder, porque depois ainda pior nos fariam."
Relato de uma trabalhadora da industria conserveira durante o movimento grevista em Setúbal, 26 de Fevereiro de 1911.
Recomendo este livro a quem, nunca passou por dificuldades que, pensa que tudo o que temos hoje nos caiu do céu, e sobretudo para aqueles que valorizam tanto o trabalho de outros povos e denigrem o povo português sem saber no entanto quantos sacrifícios foram ultrapassados ao longo destes 100 anos.
Alice Alfazema