Escarros digitais
Fábulas do século XXI
Há muitos anos, as pessoas escarravam para o chão sem que ninguém achasse estranho, cada escarro era único, verde ou amarelo, castanho do tabaco, ou de sangue de doença. Os ricos tinham recipientes próprios para escarrar, o pobre escarrava em qualquer lugar, aos mendigos escarravam-lhe em cima. Eram coisas banais do quotidiano, talvez houvesse uma atenção especial aos escarros verde e encarnado. Agora, neste tempo tecnológico, em que existem dois mundos paralelos, as pessoas começaram a deixar de escarrar para o chão no mundo real - já não o fazem por dá cá aquela palha -, fazem-no apenas quando em caso de emergência não o conseguem segurar na garganta, ou engolir, ou então escarram num canto escondido. No entanto, no mundo virtual tem aumentado a quantidade de gente que escarra, são escarros sem cor, nem cuspo, que não atravessam gargantas, nem ficam nas bocas à espera de criar a velocidade necessária para não caírem no peito, são escarros feitos de letras, que se tornam palavras, e se transformam em frases, escarradas nas caixas de comentários de uma qualquer rede social, em blogues, jornais, onde for possível que os deixem cuspir uma chamada "opinião".
A Água
Meus senhores eu sou a água
que lava a cara, que lava os olhos
que lava a rata e os entrefolhos
que lava a nabiça e os agriões
que lava a piça e os colhões
que lava as damas e o que está vago
pois lava as mamas e por onde cago.
Meus senhores aqui está a água
que rega a salsa e o rabanete
que lava a língua a quem faz minete
que lava o chibo mesmo da raspa
tira o cheiro a bacalhau rasca
que bebe o homem, que bebe o cão
que lava a cona e o berbigão.
Meus senhores aqui está a água
que lava os olhos e os grelinhos
que lava a cona e os paninhos
que lava o sangue das grandes lutas
que lava sérias e lava putas
apaga o lume e o borralho
e que lava as guelras ao caralho
Meus senhores aqui está a água
que rega rosas e manjericos
que lava o bidé, que lava penicos
tira mau cheiro das algibeiras
dá de beber às fressureiras
lava a tromba a qualquer fantoche e
lava a boca depois de um broche.
Poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage