Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Semente

Doce de abóbora

09
Abr22

IMG_20220409_194225.jpg 

Filha de ventre

insubmisso

nasci em terra estranha

e a fertilizei

com sangue

de meus ancestrais.

IMG_20220402_165601.jpg

Enterrado aqui meu umbigo este chão se fez

minha casa também.

Escarafunchei as entranhas desta terra

 suas águas

seus mistérios mais íntimos como se fosse o solo que de verdade me pariu.

IMG_20220402_171928.jpg

Aqui brotei, lancei raízes

no mais fundo deste solo. Finquei os pés

e me ergui

como se estivesse

no meu lugar primeiro

IMG_20220402_172659.jpg

Feito antigo embondeiro

vi da pele

verter a seiva

da flor, o odor

do fruto, a semente

que outra vez rebenta

e retorna ao lugar de origem.

IMG_20220402_213202.jpg

Poema de Neide Almeida, in Nós 20 poemas e uma oferenda.

Arraigar

08
Abr22

IMG_20220408_143115.jpg  

 

Ali não havia electricidade.

Por isso foi à luz de uma vela mortiça

Que li, inserto na cama,

O que estava à mão para ler —

A Bíblia, em português (coisa curiosa!), feita para protestantes

E reli a «Primeira Epístola aos Coríntios».

Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província

Fazia um grande barulho ao contrário,

Dava-me uma tendência do choro para a desolação.

A «Primeira Epístola aos Coríntios»...

Relia-se à luz de uma vela subitamente antiquíssima,

E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...

 

Sou nada...

Sou uma ficção...

Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?

«Se eu não tivesse a caridade».

E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,

A grande mensagem com que a alma é livre...

«Se eu não tivesse a caridade»...

Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!...

 

Poema de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944

 

 

Abril

06
Abr22

IMG_20220406_135407.jpg

O dia esteve frio apesar do sol brilhar com intensidade, a brisa marítima chegou-me até aos ossos com alguma facilidade, é surpreendente sentirmos o frio nos ossos, esse último reduto a ser ultrapassado antes de alcançarmos o pó. 

O rio percorria calmo, unindo serenamente as duas margens, qual tapete húmido e macio, dele se apoderaram vários tons de azul, num inesquecível prazer oferecido ao olhar.

IMG_20220406_135208.jpg

Nesta aparente paz sem pensamentos, nesta primavera triste onde os horrores da guerra reclamam as verdades ocultas, é Abril, já entrado há uns dias, é abril recordado, Liberdade prisioneira, Liberdade feita nuvem, Liberdade escondida entre escombros. 

Os ratos invadiram a cidade

povoaram as casas os ratos roeram

o coração das gentes.

Cada homem traz um rato na alma.

Na rua os ratos roeram a vida.

É proibido não ser rato.

 

Poema de Manuel Alegre

Pág. 4/4