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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Marear

20
Abr22

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De manhã são de terra
as palavras que trago sobre a língua.
Sabem a trigo
ao sangue dos morangos
ao caule das papoilas.
Dizem coisas morenas e germinam.
São de terra. As palavras.
 

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À tarde são de vento
e flutuam na seda das bandeiras
e deslizam na solidão das águias
e adejam no limiar dos plátanos.
Desabridas desatam véus e medos
e porque são de vento
constroem catedrais e tecem barcos.
Fazem bater janelas do lado do poente
por onde espreita
a ponta de marfim da lua nova.
Depois são música nos teus cabelos de harpa
E desfloram lilases.
 

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Mas à noite são água.
As palavras são água.
 

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Procuram os teus olhos enfeitados de estrelas
e salpicam safiras e matizes
no teu corpo de fonte.
Dizem regato e cantam.
 

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São cântaros no poial da entrada
onde bebem as tuas mãos vagabundas.
 

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Beijo a beijo
pus pérolas de chuva nos teus ombros.
E as palavras escorrem sendo água
na cachoeira azul-escura da noite.
Embalam sendo lago
Gestos caídos da margem
e vogam na fluidez do sono.
 

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As palavras da noite, gota a gota
Orvalhando o silêncio
(redondo, o húmido coração do silêncio).
E devagar, na espuma do desejo
Acordam naus submersas. As palavras.
 

 

E correm sendo rio
na promessa de serem amanhã
de novo terra. E trigo.
 
Mas agora são mar.
 
Vem marear comigo.
 
 
Poema de Rosa Lobato de Faria

Azoia

canto ou encanto

19
Abr22

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Quantos segundos são necessários para admirar uma flor? Durante quantos dias podemos admirar a primavera? Quanto tempo dura o encanto sentido pela descoberta das cores nascidas da terra? Desta descoberta renascem os sentimentos mais precoces da vida, onde a semente se encontre escondida num campo ainda por desbravar.

Na medida dos passos de cada um, a honestidade de querer criar raízes, mesmo sabendo que o vento sopra de norte e a luz é coisa rara. A água abundante do orvalho supera a das nuvens, dura é a terra, vermelha escura, onde os buracos dos lagartos são de um redondo perfeito.

 

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No cume as flores são pequeninas, desenvolvem-se em pormenores e em cores cativantes, é aperfeiçoar o olhar, nunca o toque, é no olhar e no cheiro abundante dos arbustos que a alma reflecte sobre o que realmente merece ser vivido. É dado um banho no espírito, ficando  o sangue a pulsar como cascata. 

 

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Seguem-se os passos dados com cuidado, suspendem-se os pensamentos para agarrar aquela memória, o cascalho solto por entre os caminhos entala-se debaixo dos pés, dificultando a caminhada, algumas pedras são tão pontiagudas que se atarraxam nas solas dos sapatos, coisas mínimas, coisas mínimas.

 

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No meio disto os pássaros fazem voos rasantes aos bagos que por ali abundam, talvez seja uma festa, parecem vestidos de gala, ao sol as suas cores destoam do fundo azul do céu, o céu está liso, impecavelmente liso, parece que foi passado a ferro com esmero, nem um vinco.

 

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Tive vontade de descansar, e sentei-me, porque descansar é preciso, assim como viver é preciso, e todas as coisas ao meu redor também descansaram, como se fossemos companheiros. O tempo parou, uma abelha deixou de zumbir, uma aranha estagnou na sua teia bordada, apenas as formigas continuaram no seu caminho sem fim.

 

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A beleza daquele lugar é vulgar, criada pelo desassossego do vento, do sol e da chuva, assim como são vulgares as palavras simples, ou o correr das horas. Vulgares caminhantes afastam-se de mim, não existem vozes que descrevam com exactidão a imensidão de um segundo ali vivido.

 

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A Azoia eleva-se acima do gigantesco oceano que agora manso se curva a seus pés, em dias de tormenta ouvem-se os seus uivos dolorosamente esbatidos nas falésias seculares. Está calmo o dia, aparentemente calmo. Com a mesma calma amarelecem os minúsculos prados.

 

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Sabe-se que em breve vão desaparecer, por enquanto erguem-se aos céus, bradando a sua beleza singular aos mais incautos caminhantes, depois recolhem à terra na esperança que haja uma nova primavera.