Poema de Manuel Alegre.
NO TEMPO DA “OUTRA SENHORA”
Os jovens, os homens e as mulheres na casa dos 40 e dos 50 anos devem agradecer aos militares de Abril e aos civis que, com eles e antes deles, lutaram pela liberdade em que cresceram e vivem. Deixo-vos aqui apenas alguns apontamentos, dos muitos que registei na memória.
Antes daquela “madrugada”, que hoje se celebra, os portugueses cresceram e viveram em ditadura, distinguindo apoiantes declarados do novo regime, o Estado Novo, os que não se manifestavam por indiferença, constituindo a maioria, e os oposicionistas, de entre os quais se evidenciaram os que “se metiam na política”, referidos como sendo “os do reviralho”. Destes, conheci alguns que militavam na clandestinidade pelo Partido Comunista, activamente perseguidos, primeiro pela PVDE (Política de Vigilância e Defesa do Estado), entre 1933 e 1945, e, depois, pela sua substituta PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). A estes, os “pides” deitavam-lhes a mão, levavam-nos para Lisboa, onde os interrogavam e brutalizavam, guardando-os depois pelo tempo que entendessem. Para os localizarem e denunciarem havia os informadores, os “bufos”, uns conhecidos, outros, não, pelo que se dizia que as mesas dos Cafés, os bancos do jardim, as pedras da calçada e as paredes de todo o lado tinham olhos e ouvidos. Conheci outros opositores da chamada oposição democrática, consentida por Salazar, com destaque para os do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Criado em 1945, foi extinto três anos depois, em virtude do grande apoio popular que registou, agrupando muitos opositores até então isolados, entre os quais muitos intelectuais e profissionais liberais.
Para além das restrições à liberdade e da censura, recordo (porque o tive de assinar quando, em 1961, comecei a trabalhar como assistente na Faculdade de Ciências de Lisboa) o decreto 27 003, de 14 de Setembro de 1936, que determinava: «Para admissão a concurso, nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com assinatura reconhecida: Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». E, mais adiante: «Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».
-Filho da puta! – Dizia o meu tio Hermenegildo, operário corticeiro.
- Filhos, por amor de Deus, não se metam na política! – Pedia-nos a mãe, aterrorizada só de ouvir falar da tenebrosa polícia política.
Embora na letra da Constituição de 1933 figurasse o princípio da igualdade entre cidadãos perante a lei, o Estado Novo considerava a mulher como mãe, dona-de-casa e submissa ao marido. A lei portuguesa de então, designava o marido como chefe de família, sendo reservado à mulher o governo da casa, o que se traduzia pela imposição dos trabalhos domésticos como obrigação, não tendo os mesmos direitos na educação dos filhos. Não tinha direito de voto, não podia ascender a determinadas chefias nem exercer cargos na magistratura, na diplomacia e na política.
Sendo casadas, as nossas mulheres perdiam o direito a intervir nas suas propriedades, não podiam viajar para fora do país sem autorização dos maridos e não podiam trabalhar sem autorização destes. O marido podia dirigir-se ao empregador declarar não autorizar a mulher a trabalhar, o que implicava o seu imediato despedimento.
As enfermeiras não podiam casar e as professoras tinham que pedir autorização para casar, o que só era permitido se o noivo satisfizesse determinadas condições, autorização publicada e em Diário da República. O divórcio era proibido, devido ao acordo estabelecido com a Concordata de 1944, numa submissão do Estado à Igreja Católica. Assim, todas as crianças nascidas de uma nova relação, posterior casamento, eram consideradas ilegítimas, não podendo ter o nome do pai, ou seja, o do companheiro.
Na orientação ideológica antiliberal e de cariz católica do ditador, a existência da mulher confundia-se com a da família, estando-lhe reservado o espaço doméstico. A “Obra das Mães pela Educação Nacional”, organização feminina do Estado Novo, criada em 1936, tinha por objetivo “estimular a acção educativa da família e assegurar a cooperação entre esta e a escola nos termos da Constituição” de 1933.
Depois de duas décadas de confronto com o liberalismo e o republicanismo, a chamada “paz salazarista” proporcionou à Igreja um terreno propício à sua reimplantação e reestruturação interna. Nestes propósitos, assumiu papel fundamental o então Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), dirigindo a Igreja Católica Portuguesa durante o Estado Novo. Elevado ao cardinalato, em 1929, pelo Papa Pio XI, foi amigo íntimo e companheiro de Salazar (militante católico nos tempos da Primeira República), no Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra.
Com a subida de Salazar ao poder, o cardeal Cerejeira pôde garantir, à Igreja, protecção, respeito e liberdade de acção. Estava na sua mente recuperar e salvaguardar os privilégios do catolicismo, como Igreja do Estado, afastados pela Primeira República, tendo tido papel fundamental na assinatura da Concordata com a Santa Sé, em 1940, na criação da “Acção Católica Portuguesa”, visando a “recristianização” da nossa sociedade, na “obrigatoriedade do ensino religioso”, na abertura de novos seminários e casas religiosas, bem como no desenvolvimento da imprensa católica.
O rol de situações vividas nesse tempo, impensáveis nos dias de hoje, é imenso, mas estas que aqui vos deixo são suficientemente elucidativas do sufoco que então se viveu.
Viva a Liberdade!