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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Fiz um bolo de figos frescos, cortei o meu cabelo e o meu vizinho pôs-se a dançar

31
Jan21

Fiz um bolo de figos frescos, cortei o meu cabelo e o vizinho pôs-se a dançar. Fiz um bolo com figos frescos que foram colhidos no Verão passado, descongelei cinco deles e coloquei-os num tachinho com um pouco de açúcar amarelo e muita canela. Juntei duas chávenas de açúcar com quatro ovos, bati até estar uma massa esbranquiçada, juntei-lhes os figos, um pouco de azeite, alguma água quente e três chávenas de farinha. Meti no forno e esperei que o tempo passasse. Também voltei a cortar o meu cabelo, fiz-lhe um corte a preceito, agarrei na tesoura e pus-me enfrente ao espelho, dividi então o cabelo ao meio, e foi a eito. Está muito aceitável. Às onze e meia da manhã o meu vizinho colocou as suas músicas preferidas em alto e bom som, o homem tem setenta anos e vive sozinho - eu sei que lhe faço companhia quando dou alguns gritos - e então começou a dançar, provavelmente sapateado. Senti-me feliz. Ri com vontade. 

Mar da nossa Terra

Mar da Minha Terra - Almada Atlântida

30
Jan21

No outro dia falei aqui daquilo que está a acontecer no Rio Sado, entretanto, não me lembro de ver noticiado nos órgãos de comunicação social esse crime ambiental, pelo menos na forma como deveria ter sido divulgado. É bom que nos lembremos mais vezes que tudo isto tem um preço demasiado elevado para todos nós, e recordemos também que não vivemos num mundo virtual higienizado onde tudo tem solução.  É uma brutalidade termos de perder estes museus vivos em prol dos poderes económicos instalados. De repente lembrei-me de vacinas. 

 

 

"Mostra-me como as pedras são engraçadas..."

29
Jan21

Estamos todos exaustos disto tudo, das notícias, da falta de esperança, do desassossego, do medo, do cansaço de não nos ser permitido sair, da falta de convívio, do silêncio e da morte. Importa assim,  exercitar o músculo, por vezes desconhecido, que  é o nosso cérebro,  tendo novos pensamentos, criando sugestões positivas, enfim cuidar da nossa sáude mental. Decifrar o que realmente vemos é o que hoje vos sugiro. As imagens são de Martina Grasso e o texto é de Rubem Alves.

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Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões… Agora, tudo o que vejo me causa espanto.”

 

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Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda. Procurei a “Ode à Cebola” e lhe disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ‘Rosa de água com escamas de cristal’. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta… Os poetas ensinam a ver”.

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

 

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William Blake sabia disso e afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

 

Adélia Prado disse: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”. Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. “Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do “terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram”.

 

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Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, “seus olhos se abriram”. Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em “Operário em Construção”: “De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção”.

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam… Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: “A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas”.

Por isso porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver, eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade quotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos”…

*Rubem Alves, crônica “A complicada arte de ver”. publicada originalmente em Folha de S. Paulo, 20.10.2004.

 

 

 

o ió-ió

28
Jan21

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Ilustração Matt Saunders 

 

A Ana tinha um ió-ió muito bonito
que fazia tudo o que ela queria
quando ela dizia "para cima" o ió-ió ia para baixo
quando ela dizia "para baixo" o ió-ió ia para cima

Como gostava muito daquele ió-ió
a Ana fazia de conta que não percebia
para o ió-ió ir para cima dizia "para baixo"
para o ió-ió ir para baixo dizia "para cima"

E como o ió-ió gostava muito muito da Ana
era o ió-ió mais obediente que havia
quando ia para cima fazia de conta que ia para baixo
quando ia para baixo fazia de conta que ia para cima

 

Poema  de Manuel António Pina

 

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