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Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Alice Alfazema

Recortes do quotidiano: do meu, do teu, do seu, e dos outros.

Uma arte do ser

Arte Poética II

25
Nov20

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Ilustração Bee Johnson

 

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Bellissimo!

24
Nov20

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Hoje na hora do almoço fui beber um café, pedi um bolo miniatura para dar pompa à circunstância. Quando recebi o pedido fiquei tão contente com o efeito que pensei automaticamente, tenho de tirar uma fotografia para lhes mostrar. E quem são os lhes? São vocês que passam por aqui todos os dias, que me deixam comentários, que me acompanharam durante este mês de Novembro, que foi para mim um mês duro e de clausura forçada.  Mês em que fiz parte dos números da listagem diária da DGS. Durante duas semanas tomei de assalto a sala, fiz do sofá a minha cama e o meu local preferido de passagem das horas. Tricotei uma camisola para espairecer os pensamentos. Os dias foram muito compridos, acompanhados de um sentimento de inutilidade permanente, agora parecem-me longínquos esses dias, como se o tempo tivesse tomado outra proporção. Eu que tanto prezo a minha Liberdade, vi-me privada desse bem tão precioso, diremos que é por um bem maior e que não tive grandes sintomas que me privassem de saúde física, estou grata por isso, mas esta doença para além das maleitas físicas faz-nos sentir o quanto somos insignificantes ou indispensáveis para aqueles que nos rodeiam. Todos os dias tive mensagens de ânimo, todos os dias tive pequeno- almoço na cama, almoços caprichados, jantares variados, café adoçado, bolinho, no entanto não pude compartilhar  essa magia da troca de afectos. Eu que gosto de estar sozinha, de ter tempo para pensar e de fazer o que me apetece, e que há meses estou constantemente acompanhada, senti aquilo que julgo ser o verdadeiro sentimento de solidão, não porque não tivesse ninguém, mas porque me sentia abandonada por mim, com um sentimento de nulidade agarrada à pele. 

Vai um cafezinho? Pago eu. 

 

Fiquem bem. 

A meio

23
Nov20

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Ilustração  Lucija Mrzljak

 

Olhei a fotografia gasta e desbotada pelo tempo, tinha algumas nódoas no papel amarelado. Virei-a para ver se tinha alguma dedicatória. Uma letra cuidada e elegante bailava ainda no papel envelhecido. Querido, começava a linha escrita a azul fim de tarde, pelo meio algumas palavras que só eles sabiam o sentido, no fim, desta que te ama, a assinatura estava no pedaço já rasgado.